As próximas décadas reservam-nos grandes transformações e outras tantas surpresas. Uma dessas grandes transformações diz respeito à evolução da sociedade digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade, transgressão e condicionamento, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade. A informação bruta produzida pelas tecnologias da informação e comunicação é a matéria-prima do século XXI e a economia das multidões a nossa principal força propulsora.

Por outro lado, as grandes transformações desencadeiam inúmeros efeitos externos, muitos círculos virtuosos e viciosos e outras tantas pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas. É aqui, neste metabolismo sistémico emergente e vertiginoso das grandes transformações que a contribuição do filósofo Paul Virilio sobre as relações entre velocidade, tecnologia e política faz todo o sentido. Com efeito, no atual contexto, a velocidade das transições excede o tempo da política e muda a nossa perceção do tempo e do espaço, agora que estamos a migrar para o universo do ciberespaço onde a velocidade é uma vertigem e o risco de colisão é cada vez maior. Imagine-se, por exemplo, a velocidade de uma tecnologia como a inteligência artificial e a automação das máquinas inteligentes e estaremos cada vez mais próximos de muitos incidentes e acidentes de percurso.

Acresce que o tempo lento da política, que é o tempo da arte do compromisso social, não se compadece com o infinitamente pequeno do tempo instantâneo, o tempo infra, o tempo do reflexo e não da reflexão, tudo isto por que o tempo humano foi ultrapassado pelo tempo-máquina e o poder foi delegado nas máquinas do tempo. De certo modo, a História transferiu-se da Terra para o Céu (o ciberespaço e a computação em nuvem!!), a aceleração do tempo tornou o mundo plano e emergiram os não-lugares onde a identidade dá lugar à rastreabilidade e à vigilância.

Acresce, ainda, para mal da política do compromisso, a desconstrução da cultura geral devido à alucinação e loucura de informação, em que a aceleração do tempo nos impede de ver a diferença entre verdadeiro e falso, já para não falar do défice de empatia entre os seres humanos, agora substituído pela sincronização das emoções na colónia virtual ou pelo comunismo dos afetos, uma espécie de nova tirania dos sentimentos.

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No que diz respeito ao regime de transição, depois da imprensa, dos livros e jornais, depois da rádio e televisão, temos agora os smartphones e os écrans de computador. Assistimos a uma transformação estrutural da esfera pública na sociedade digital, ou, como diria, o filósofo Jurgen Habermas, assistimos à emergência de uma outra teoria do agir comunicacional. A grande questão de sociedade que se impõe é, então, esta: perante a crescente digitalização da sociedade, vamos nós reinventar o grande compromisso da política ou vamos ceder face a uma outra física social, engendrada por máquinas inteligentes e algoritmos, que nos confinam e condicionam por meio da normalização e padronização dos nossos comportamentos?

Já sabemos que a nossa racionalidade é limitada, mas também sabemos que fomos capazes de encontrar um fundo comum de discussão em que a contextualização, a argumentação e o contraditório fazem parte da nossa racionalidade comunicativa.  Esta é a fileira da ação comunicativa e a base da nossa esfera pública democrática tal como a conhecemos no mundo ocidental onde a divisão tripartida dos poderes e as liberdades públicas asseguram, apesar do ruído, o compromisso da política e a política do compromisso.

Ora, a transição para a sociedade digital faz emergir uma outra fileira, mais próxima de uma física social, onde o Big Data, a lógica algorítmica, as máquinas inteligentes e a inteligência artificial aparecem como um equivalente funcional da esfera pública e da vontade geral de outros tempos. Estamos perante uma teoria behaviorista, utilitarista, do comportamento humano, que a racionalidade digital normalizou e padronizou por via da informação e dos dados que nós produzimos constantemente e que, além disso, nos conduzirá até à verdade última sem o ruído e o desperdício da racionalidade comunicativa. Em suma, a fileira digital revela-se superior à racionalidade do agir comunicacional e à sua fileira de discussão, argumentação e comunicação.

Fica, todavia, por resolver um pequeno problema. Nós não somos como as abelhas ou as formigas que funcionam de acordo com as leis de uma certa física social e, além disso, os enxames digitais são bolhas de consumo e comunicação muito perigosas. Não obstante, a tendência da sociedade digital acentua-se, o espaço público democrático é, cada vez mais, centrifugado pelas plataformas descentralizadas e distribuídas que se revelam incapazes de ação política e cognitiva consequente.

Este é o confronto direto ou a coabitação em que vivemos atualmente. De um lado, a diversidade representativa e a opinião dos outros, uma racionalidade própria feita de discussão, argumentação e contraditório que enriquece e constrói a democracia política. Do outro, a privatização e a tribalização da internet, a revisão dos factos em nome de uma verdade identitária e corporativa. Deixa de haver debate e discussão, o contexto não conta, os argumentos não contam, a ação comunicativa desaparece.

Ora, o mais provável é que estas duas racionalidades passem a coabitar e a interagir na sociedade digital. Por um lado, não podemos prescindir do compromisso da política porque um somatório de esferas privadas não faz uma esfera pública e as desigualdades sistémicas não foram eliminadas, por outro, os instrumentos da sociedade digital são muito preciosos para construir a convergência entre valores individuais e valores sociais. Em suma, não podemos prescindir da política e do seu compromisso, embora os utilitaristas do Big Data e da IA afirmem que seria muito útil prescindir da política.

Notas Finais

Em síntese, estamos algures entre o capitalismo de informação e o capitalismo de vigilância, de smartphone na mão e nas mãos da caixa negra algorítmica que faz o registo total do nosso comportamento. Fica o aviso. De espetadores passivos passámos para emissores ativos de informação. Todavia, não podemos tolerar que a embriaguez informativa mantenha as pessoas na ignorância e que a vertigem da informação crie uma agitação no sistema cognitivo que destrói a perceção da realidade e a ação racional. Seja como for, o cenário de guerra já aí está: trolls, social bots, contas falsas, fake news, desinformação, ódio, tweets, memes, vídeos, fotomontagens, vírus mediáticos.

Felizmente que os algoritmos, por mais inteligentes, não eliminam a memória, a contingência e a imaginação. Não esqueçamos, nunca, que a verdade é uma construção social e isso dá sentido à vida em comum, o seu fundamento existencial. Ora, a saturação informativa faz-nos perder o impulso para a verdade que foi parcialmente privatizada. Nada parece confiável. Voltemos, pois, ao essencial: o bem comum, o bom senso, a ética do cuidado, o fundo comum das coisas, a língua comum. A verdade é um regulador da vida em comum porque nos proporciona o caminho do reencontro.