Vamos saber amanhã se o juiz Ivo Rosa considera que José Sócrates deve ir a julgamento ou não. Desconheço, é claro, a percentagem de portugueses que estão muito curiosos de saber qual a decisão do juiz, mas não é difícil imaginar que seja grande. E, nesse grande número, aqueles que estão convencidos da sua culpa estarão sem dúvida em maioria. O que não significa forçosamente que todos eles rejubilem se o juiz se decidir a levá-lo a julgamento. Muita gente tende a conviver bem com a presumida desonestidade e até a achar-lhe graça, desde que ela não choque com o interesse próprio.

O que é um facto é que tudo o que se sabe da história do homem que foi nosso primeiro-ministro deixa uma pessoa sonhadora e conduz praticamente toda a gente a relegar a hipótese da sua inocência ao estatuto de um ocioso contra-factual, isto é, de algo que poderia ocorrer num universo alternativo, mas, decididamente, não aconteceu no nosso. Ora, os contra-factuais podem ser muito úteis em história – entre outras coisas porque nos permitem pensar melhor a singularidade do curso dos acontecimentos que teve efectivamente lugar -, mas a pergunta “O que teria acontecido se Hitler tivesse conseguido invadir a Inglaterra?” supõe exactamente que ele não conseguiu. Convém ter os pés na terra e saber que nem os deuses, como dizia Aristóteles, podem fazer com que o que aconteceu não tenha acontecido. Claro que a culpa de Sócrates não é uma necessidade neste nosso mundo. E, para falar de novo como Aristóteles, é verosímil que as coisas aconteçam por vezes contrariamente à verosimilhança. Mas a probabilidade, como se sabe, é escassa e remota.

Seja como for, a persuasão da culpa é generalizada. Pessoalmente, a questão nem me apaixona muito, confesso. E não me apaixona, entre outras coisas, porque tenho dificuldade em seguir as peripécias legais todas do processo. Mas não quero fingir nenhum soberano desinteresse. Estou interessado. Nem quero simular um qualquer agnosticismo no capítulo. Estou firmemente convencido da culpabilidade do homem. A inverosimilhança de em tudo aquilo que veio relatado nos jornais e nas televisões nada apontar decisivamente para a existência de uma pequena colecção de delitos não me deixa outra hipótese. Ou então, se a hipótese é falsa, a vida dele mais se assemelha à de um personagem de ficção do que à de um ser humano real.

O que me interessa são duas coisas. Primeiro, imaginar a reacção da sociedade portuguesa a uma possível decisão do juiz Ivo Rosa de não levar Sócrates a julgamento. Depois, tentar perceber a relação dessa possível reacção à atitude que foi, durante os anos da governação de Sócrates, a da maioria dos portugueses.

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Qual seria então a reacção? Não sou particularmente dotado para a imaginação política ou sociológica, mas creio que seria uma reacção de incredulidade e estupefacção. Mesmo numa sociedade anestesiada por António Costa e pelo medo da Covid (e agora, pelo absurdo medo, induzido por governos vários, da vacina da AstraZeneca, muito para lá de qualquer razoabilidade), o grosso das pessoas ficaria muito surpreendido se nos fosse anunciado que as provas apresentadas contra Sócrates nada tinham de conclusivo. Muito se seguiria, imediata e compreensivelmente, a essa surpresa, e tudo correspondendo às mil facetas de um descrédito generalizado. Praticamente instituição alguma, das mais elevadas às mais humildes, ficaria inteira. Não digo que turbas em fúria decidissem invadir a Assembleia da República, decididas a escalpelar todos os deputados, do seu presidente ao mais anónimo e silencioso representante do povo. Não é muito o género português. Em contrapartida, vejo muito bem a exorbitação da cólera vocal e, sobretudo, a decisão tácita e colectiva de não cumprir nada que o Estado ordene. O cumprimento das leis só tem lugar se as condições mínimas de crença na autoridade se verificarem. Ora, quase todas elas se esboroariam com uma tal surpresa. O tempo necessário para colar em seguida todas as peças partidas seria imenso, até porque quem deveria colá-las dificilmente sairia incólume do desastre. Não estou a imaginar, espero que se perceba, algo que deseje. Estou apenas, mais uma vez, a colocar-me no terreno do verosímil, que é o que a imaginação política permite.

O que não é apenas da ordem do verosímil é que muitas das pessoas que assim agiriam contribuíram para reeleger o mesmo José Sócrates em 2009. E para o reeleger numa altura em que as características pessoais e políticas da personagem estavam já à vista de todos e que não era preciso possuir grandes dotes de adivinhação para perceber que algo de muito mau nos viria dali. É verdade que a cegueira política é um direito democrático pleno e inteiro. Mas não deixa de ser curioso que aquilo que é facilmente percepcionável de forma directa, com um mínimo de atenção, goze, aos olhos de muitos, de uma menor evidência do que aquilo que só se conhece através de uma reconstrução laboriosa de factos passados. O futuro é, sem dúvida, por definição incerto, enquanto o passado se apresenta com uma fixidez inalterável, e, nesse sentido, o segundo suscita uma crença mais inabalável do que o primeiro. Mas a percepção directa tem, sem dúvida, vantagens indiscutíveis face à percepção indirecta. Neste caso, a percepção facilmente experimentável das consequências nefastas da personagem política que era Sócrates deveria ser mais intrinsecamente fiável do que a percepção das acções passadas através da sua reconstrução pela investigação criminal.

Mas o mais provável é que as pessoas sejam mais sensíveis ao crime do que à acção política e que a sua atenção seja mais facilmente capturada pelo primeiro do que pela segunda. O problema é que é a segunda que muitas vezes facilita o primeiro. E a segunda, a acção política, é algo do qual, através do voto, somos co-responsáveis. É por isso que Sócrates é uma questão que temos, ou deveríamos ter, a nosso respeito.

PS. Na coluna da semana passada cometi um erro. Escrevi que Francisco Louçã foi nomeado para o Conselho de Estado pelo Presidente da República. De facto, ele foi eleito para o cargo pela Assembleia da República e, naturalmente, empossado pelo Presidente.