Em 15 de Novembro de 1899, Luís da Câmara Pestana, médico, prestigiado higienista e fundador do extinto Instituto Bacteriológico de Lisboa, morria aos 36 anos, no antigo Hospital de Arroios, em Lisboa, depois de ter sido um dos primeiros especialistas a partir para o Porto para estudar os tratamentos contra a peste bubónica que eclodia na zona da Ribeira. Câmara Pestana acabaria por ser vítima de um descuido fatal, quando durante uma operação contraiu a doença. Segundos relatos da época, também retratado no livro “Príncipes da Medicina” (Saída de Emergência, 2016, de Mário Cordeiro), Câmara Pestana foi um “mártir da Ciência”. Morreu ao serviço das populações, foi um médico de um altruísmo inexcedível que merece hoje ser recordado.

Em 2020, a peste que varre o mundo tem revelado os nossos heróis, quase todos eles anónimos, exaustos física e psicologicamente, uma parte já infectada pela Covid-19. São todos os profissionais de saúde que estão na primeira frente de combate de uma guerra que interrompeu o quotidiano das nossas vidas. São esses seres humanos que “dão o peito às balas”. O vírus da Covid-19 está a fazer questionar tudo, a abalar os pilares económicos e obrigou a uma mobilização sem precedentes na nossa história. Está em causa a nossa sobrevivência. Estamos em emergência nacional e global.

A pandemia de SARS-CoV-2 é um teste inédito aos sistemas de saúde públicos, e não houve sequer lugar a um exercício de simulacro. Houve apenas reacção, depois do surto aparecer na China, no início de Dezembro de 2019. Mas o inimaginável aconteceu, pois se há alguns meses nos dissessem que o mundo iria ficar de pernas para o ar por causa de um vírus, praticamente ninguém acreditaria. Nem mesmo a Organização Mundial de Saúde, que embora acompanhasse a expansão da Covid-19 desde primeira hora, apenas no dia 11 de Março, atingidos os 118 mil infectados, declarou situação de pandemia. Agiu também tarde. Porventura, os sucessos no controlo de outros surtos como a SARS em 2002, a H1N1 em 2009, o Ébola em 2014, e a MERS em 2015, levaram as autoridades de saúde a desvalorizarem o surto.

Cumpre deixar para mais tarde as causas e os nossos erros. No imediato, o mais importante é vencer esta guerra, colocar todos os recursos humanos e materiais possíveis para combater um inimigo sem rosto e que mata a um ritmo assustador. Este combate à Covid-19 não é para ser travado entre partidos, mas por mulheres e homens, da sociedade civil e do Estado, pela Ciência e por todos aqueles que amam Portugal e querem proteger os nossos pais, avós, tios e amigos. Se há alguma razão para vivermos, a primeira é o espírito de solidariedade nos momentos difíceis. Vamos dobrar esta tormenta. “Combateremos nas praias. Combateremos onde aterrarem. Combateremos nos campos e nas ruas. Combateremos nas montanhas. Nunca nos renderemos!”, como Winston Churchill falara ao Parlamento inglês.

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Este é também o maior desafio para a União Europeia, bem superior à crise financeira de 2008, ao tombo das dívidas soberanas ou ao Brexit. Todas as instituições europeias têm uma prova de fogo. A União precisa de recuperar o cimento que a ajudou a consolidar: o sentido de comunidade entre os povos. Mas onde está a coesão europeia quando Itália se viu obrigada a pedir ajuda à Rússia e a Cuba?

É uma crise tríplice (depois da sanitária): económica, social e institucional. Mais do que a emissão de “coronabonds”, para dar estabilidade aos Estados mais expostos diante dos mercados, é essencial uma partilha de riscos com um modelo de mutualização de dívidas na zona euro, e é necessário garantir as necessidades de tesouraria das pequenas e médias empresas. Será vital um Plano Marshall, de investimento inteiramente europeu, pautado por critérios claros de equidade na distribuição dos recursos, para reerguer a economia dos escombros, e dar vida às micro, pequenas e médias empresas, aos comerciantes, agências de viagem, pequenos agricultores, empresas de transportes aéreos, meios de comunicação social, artistas e agentes culturais, IPSS e negócios criativos. Será preciso injectar dinheiro para salvar postos de trabalho que correm o risco de desaparecer ainda antes da eventual segunda vaga da pandemia de Covid-19. Ou os líderes da União arregaçam as mangas ou teremos uma hecatombe social que afastará irreparavelmente os cidadãos de Bruxelas. Ou os líderes europeus agem com conta, peso e medida ou não será só Portugal que terá “pela frente um tsunami”. É a União Europeia que irá sofrer uma derrocada estrondosa, minando por completo os alicerces da Comunidade. Ou pomos de lado egoísmos e superamos as nossas contradições ou a história da União Europeia conhecerá um ponto de retrocesso irreversível.

É notável a resposta de civismo e de grandiosidade dos portugueses. Um vírus despertou em nós o lado mais fraterno. O poder do novo coronavírus ajudou a despertar as forças de uma nação que é capaz de superar qualquer obstáculo (também a gripe espanhola, há cem anos, matou 60 mil portugueses). Somos todos soldados nesta frente que tem evidenciado o que de melhor Portugal tem. Uma pandemia vence-se com informação séria e credível e com a multiplicação de gestos de boa vontade.

Estamos a viver o maior contratempo e a mais poderosa corrente de forças na história da humanidade desde a Segunda Guerra Mundial. O mundo está com a cabeça às voltas e os próximos 80 dias serão cruciais para renascermos da peste que parou o Planeta.