A pandemia que vivemos trouxe à tona as fragilidades e impreparação de vários setores da sociedade na resposta a uma crise desta dimensão. O facto de lidarmos com um novo vírus sobre o qual ainda muito há a descobrir deixou-nos expostos a um frenesim de informação online que chega de todo o mundo, muitas vezes de forma descontextualizada e de fontes não fidedignas, gerando dificuldade em identificar evidências e orientações robustas.

No que à medicina dentária diz respeito, passadas algumas semanas desde a sua interrupção, é tempo de tomar decisões;

A medicina dentária é ou não uma profissão de risco?

A elevada geração de aerossóis em alguns procedimentos dentro do gabinete dentário, aliado à proximidade no exercício clínico, catapultaram os dentistas para o topo das profissões de risco hipotético no contágio do vírus SARS Cov 2. Preventivamente e devido ao desconhecimento sobre a doença, a medicina dentária teve de reduzir os seus serviços a situações de urgência.

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Atualmente, na cidade de Wuhan, onde a Covid-19 se manifestou mais cedo, constatamos que a taxa de infeção entre profissionais de saúde oral foi mínima e sem relevância num contexto geral. A boa notícia é que não existem ao momento clusters de infecciosidade conhecidos em medicina dentária no mundo. De facto, os protocolos prévios usados em medicina dentária e elaborados no contexto de outras patologias como o VIH, tuberculose ou hepatites são de facto extremamente eficazes na prevenção da infeção cruzada.

Tabela 1 – Infeção entre os profissionais de saúde do Departamento de Estomatologia (DoS) de alguns grandes hospitais gerais públicos de Wuhan

(Fonte: Prof. Dr. Zhuan Bian)

A escassez de equipamentos de proteção individual

Para que os médicos dentistas possam exercer as suas funções em segurança, é imperativo que atuemos devidamente munidos de equipamentos de proteção individual (EPI’s) que salvaguardam a nossa segurança, a dos pacientes e de todos com quem convivemos. Estes equipamentos consistem na utilização de máscara FFP-2, vestuário de proteção como batas e sobre batas, viseiras de proteção, entre outros.                                                                                                                             A escassez generalizada deste tipo de equipamentos já se faz sentir em muitas clínicas dentárias e coloca em causa a sua capacidade de resposta para tratar pacientes em situações de urgência, que veem o seu atendimento negado em algumas clínicas, precisamente por não terem materiais de proteção que garantam a segurança de todos.

Imagem 1 – Equipamentos de proteção individual para agentes biológicos

(Fonte: Orientações da Direção Geral de Saúde por Francisco Moura George)

O que não era considerado urgência, agora pode já ser

A viabilidade da admissão de urgências através de pré-triagem telefónica começa a esgotar-se. Nestas constam processos que envolvam dor ou que comprometam a saúde oral; a fratura de restaurações, coroas cerâmicas, próteses e aparelhos ortodônticos removíveis, traumatismo dentário com dor associada, processos inflamatórios ou infeciosos que envolvam dentes ou implantes, entre outros. O adiamento de tratamentos dentários de caráter contínuo, pode representar consequências que podem ser graves e irreversíveis. Isto leva-nos até ao próximo ponto.

A questão da interrupção dos planos de tratamento

Tome como exemplo um paciente que, no início da pandemia apresentava dor de dentes e teve de realizar uma desvitalização dentária e aplicar uma restauração provisória. Nas semanas seguintes, e por se tratar de um tratamento de carácter provisório, o dente perdeu a sua resistência e fraturou, porque idealmente este seria um processo com um intervalo de tempo mais reduzido. A solução de tratamento inclui agora a extração do dente, ou seja, a perda do mesmo.

O tempo é um fator preponderante na opção de tratamento em patologias de carácter contínuo. Aquilo que começa como um dente fraturado ou uma lesão de cárie, e que poderá ser resolvido através de uma simples reconstrução, pode resultar na perda do dente, devido ao comprometimento da estrutura dentária ao longo do tempo. Consequentemente, um processo como este poderá implicar custos para o paciente, quer em termos de saúde, quer em matéria de despesa.

Um regresso seguro

Sabemos que o regresso da medicina dentária ao seu exercício está para breve, numa realidade diferente para a qual nos temos vindo a preparar ao longo das últimas semanas. As rotinas no funcionamento de uma clínica terão de ser alteradas dentro e fora do consultório, passando por uma gestão de agenda clínica mais criteriosa e que garanta o espaçamento entre consultas, evitando assim aglomerações nas salas de espera. Novos hábitos terão de ser criados entre médico dentista e paciente, a começar pela simples forma de se cumprimentarem, reduzindo a proximidade física ao interior do gabinete e com os devidos equipamentos de proteção. Além disto, as equipas clínicas terão de ser submetidas a testes periódicos ao vírus.

Será um regresso necessariamente gradual, mas que deve ser otimista e principalmente com os olhos postos numa medicina dentária ainda mais segura, mais cautelosa e até mais digital. Durante esta interrupção, foi possível aprofundar a utilização de ferramentas digitais como a telemedicina na medicina dentária, que representou um papel fulcral no contato virtual entre médico e paciente e que continuará a ser imprescindível em processos de triagem e diagnóstico precoce.

Sinto que a comunidade da medicina dentária está mais preparada que nunca para o regresso destes profissionais de saúde à sua atividade, de uma forma consciente e segura, com os olhos postos num futuro que vejo como mais exigente, mais forte e de maior confiança.