“A menina é menor ou maior?” – pergunta o segurança à porta do hospital, à mãe e filha que esperam à minha frente. A rapariga abre os olhos, interrogativos. “És maior ou menor?”, o homem insiste. A mãe responde, com os papéis na mão: é maior. “Ah, então vai sozinha!” O homem insiste, “Já não precisa da mãe. Há muita gente ao longo do corredor para lhe indicar o caminho. Se for preciso alguma coisa, ligam à mãe. Tens os contactos todos aí, não tens?” A rapariga avança incentivada pelo segurança. Ainda está a processar a resposta à primeira pergunta. A absoluta incerteza quanto ao que fazer. É maior.

É a minha vez. Não é difícil o segurança perceber que sou maior. Entro pela porta principal do hospital. À esquerda, a escada de acesso ao anfiteatro da Aula Magna. Em frente, o corredor amplo, onde eram os correios, e o banco. O corredor agora vazio de gente, mesas à direita, com os retângulos no chão: mantenha a distância de segurança. Peço indicações a uma assistente operacional – é a minha segunda vez nesta consulta e já percebi que os circuitos estão muito alterados. Desço um piso, caminho pelo corredor. Não há ninguém à espera na colonoscopia, nem macas, nem gente de um lado para o outro a carregar papéis. Final do corredor, tiro a senha. Paro em frente a uma mesa antes de entrar na zona de consulta. A enfermeira faz um mini inquérito sobre contacto com pessoas infectadas de Covid-19 e mede-me a temperatura. Autocolante branco com um T manuscrito colado à roupa e sou autorizada a passar. Se fosse um A encarnado seria pior.

Espero nas cadeiras marcadas com intervalo de duas em duas. Um terço da sala ocupada. Segurança de um lado, segurança de outro. Sento-me. Em volta, o silêncio, a organização, as pessoas arrumadas, atentas aos ecrãs de chamada. Ainda estou a dar entrada nos serviços administrativos quando toca o telefone. É a médica. Está à minha espera, quer saber se sempre vou à consulta. Olho para o relógio: 15h31. Um minuto atrasada. Consulta com a médica e um interno. Vinte minutos de total atenção com direito a palpação para treino do aluno. É um outro hospital, organizado, sem espera, sem atrasos, com tempo. Comento a minha surpresa. Silêncio do outro lado da mesa. Os olhos mudam de direção e repetem as indicações para a consulta seguinte. “Se quiser, pode passar na farmácia do hospital e pedir para que a medicação seja entregue em casa”, diz a médica. Acabaram-se as filas para levantar medicamentos. Bom, digo eu. Tempos Covid, responde ela. É todo o hospital a tratar a Covid, confessou. O resto ainda está a abrir.

Já não cheguei a tempo, a farmácia fechou às quatro. Horário Covid. O hospital também parece estar fechado. Hospital Covid. Tempos Covid. Não há mais para além disto. Diagnósticos suspensos, as consultas em lentíssima retoma, as autorizações por assinar, enfermeiros alocados ao covidário, à mesa de triagem das consultas, à espera de pacientes que, com medo, não vêm.

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Durante o período de confinamento, 1,4 milhões de consultas foram suspensas. Estamos em Julho. Ainda estamos longe de recuperar esse número. A Covid continua a infectar, as doenças crónicas principais – diabetes, doença respiratória, doença oncológica e doença cardiovascular – continuam a matar, os novos casos continuam a surgir. Agora em silêncio porque não diagnosticados. Os hospitais abrem, mas não totalmente. As exigências de segurança limitam a capacidade de resposta e afastam os doentes daquilo que consideram ser um local de perigo. Afastam-nos também da possibilidade de um diagnóstico precoce, de um tratamento adequado, da sobrevivência possível.

Saio do hospital para o calor do verão, 39 graus. Não se respira. Nem dentro, nem fora.

Fico a pensar na miúda assustada, paternalistamente separada à porta, por ser maior. E no marido que deixa a mulher sozinha para fazer o exame de imagem por suspeita de Doença de Alzheimer. Não quer dizer que tem medo que ela se perca, não quer preocupá-la. Ela vai, sozinha, agarrada ao papel.

Não se assegura a população vulnerável. A que está entre a autonomia e a dependência, ou ainda sem diagnóstico que lhes permita acompanhante. Estas são as pessoas que habitam o limbo da sorte: com sorte não se perdem, com sorte conseguem dizer o que querem da consulta, com sorte não saem do hospital sem a família, com sorte não são encontradas mortas debaixo de um viaduto.

Somos um país de sorte e de fado. Quando uma não resulta, canta-se o outro.