Até aos 39 anos acreditei na minha velhice. Depois de uns sustos em que julguei que ia morrer, deixei de tomar o meu envelhecimento como provável. Mais do que acreditar que vou andar por cá, acredito hoje que vou embora. E sinto-me mais aliviado desde que decidi não sobrevalorizar a minha longevidade. Ao desaparecer a minha confiança na religião da esperança média de vida, pude assumir que, no que diz respeito a envelhecer, sou pura e simplesmente agnóstico. A minha velhice pode até existir mas não posso dizer que creio nela.

Claro que me agrada envelhecer: continuar casado com a Ana Rute; ganhar netos dos nossos filhos; ver o povo da nossa Igreja chegar à terceira geração; fazer e manter amigos; gravar mais discos; escrever outros livros; pregar novos sermões. Mas deixei de tomar como garantido seja o que for. Gostava de chegar ao Natal mas vamos ver… Notei, por exemplo, que, não tendo celebrado a chegada da pandemia, ela também não me pôs mais à rasca do que já tinha estado.

Sou geralmente acusado de ser chato e o agnosticismo quanto à minha velhice não é excepção. Dizem-me, com o manual de ciência estatística aberto, que envelhecer é o mais provável no Século XXI, e não nego. Que hoje corremos todos o risco de andar por aqui muito mais tempo do que os dos outros tempos andaram é facto. Mas a minha mudança de atitude não se baseia em cálculos.

Também não quero que o agnosticismo com a minha velhice soe a sermão, hábito que dificilmente evito. Não tenho como negar que um dos ingredientes mais saborosos de ser pregador é ter no facto mais incontornável do universo—o de que todos vamos morrer—um poderoso incentivo para a minha eficácia. Se Deus existir mesmo e a minha religião não estiver tão errada assim, a morte vai apresentar todos ao meu patrão. E tenho-me como uma espécie de funcionário dele em cobranças difíceis. É melhor pensar em tentar saldar a dívida aqui, parece-me. Mas não sou agnóstico quanto à minha velhice por técnica de maior persuasão profissional.

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Por outro lado, também não quero que o agnosticismo com a minha velhice deseje perversamente que o meu eventual desaparecimento físico precoce se tornasse uma maneira de viver para sempre nos outros. E tenho de reconhecer que também tendo a idealizar mortes trágicas de gente nova como insinuações de eternidade. Um velhinho que se apaga geralmente não impressiona ninguém. Nessa medida, envelhecer faz bem ao ego de todos e ao meu em particular.

No entanto, sou agnóstico diante da minha velhice porque simplesmente não a conheço ainda, como a própria palavra grega dentro de “agnóstico” indica. Não tenho “gnose” da minha longevidade. Quando muito, ela poderá acontecer. Admito, sim, que se ficar velho gostava de atingir o que, na pequena preciosidade que é o livro “Vinte e Quatro Horas da Vida duma Mulher”, Stefan Zweig escreveu: “envelhecer é perder o medo do passado”. E se, de facto, o melhor da velhice é perder o medo do passado, talvez o melhor de hoje seja perder o medo do futuro.

Suspeito que o medo do futuro é a religião das religiões. Nos finais dos anos 80 vulgarizou-se, à custa do sucesso do filme de Peter Weir, “O Clube dos Poetas Mortos”, a expressão “carpe diem”. Para além de tatuagens péssimas, este lema latino inspirava as pessoas a viverem cada dia como se fosse o último. Era a versão sem-fé do velho “memento mori” diário dos monges, em que a lembrança da morte nos ajuda a viver. Mas o agnosticismo com a minha velhice não quer chegar exactamente aí. Não quero tanto que a morte me ajude a viver (apesar de também não ser contra); quero mesmo é que a vida me ajude a morrer. Não acredito em ser velho. Mas confesso que acredito que, sem morte, ninguém chega a ser realmente novo—é a minha esperança eterna de vida.