Olha-se à volta no mundo da política portuguesa e a última coisa que se vê são diferentes projectos de sociedade, daqueles de que a teoria gosta de nos falar e que a indústria académica lança no mercado como pãezinhos quentes acabados de sair do forno. Nunca o divórcio entre o mundo das ideias e o mundo real parece ter sido tão grande. A excepção, é claro, encontra-se na extrema-esquerda parlamentar, mas essa, coitada, não ousa, por razões compreensíveis, dizer o seu nome, contribuindo assim para a indistinção geral. O resto vive numa espécie de caldo turvo em que as diferenças apenas se manifestam pela prática de certos rituais específicos, sobrevivências destinadas a perpetuar a memória confusa de totens tribais em cuja eficácia ninguém já verdadeiramente acredita ou sequer efectivamente compreende.

Não há sequer, desde que Cavaco Silva se reformou da política e Passos Coelho abandonou a liderança do PSD, personalidades marcantes. Marcelo, Costa e Rio têm sem dúvida idiossincrasias pessoais, mas nisso nada se distinguem, além da facilidade de as exprimirem na televisão, do mais obscuro cidadão comum. Quem lhes suspeita um pensamento político coerente ou um desejo verídico de transformação da sociedade? Tirando um fanático partidário ou outro, ou a classe dos comentadores políticos profissionais, que precisa de fingir que acredita nessas coisas como de pão para a boca, ninguém, literalmente ninguém. Os ídolos da praça pública, as palavras e os nomes que parece terem ganho uma existência autónoma independente de qualquer contacto com a realidade – “neoliberalismo”, etc. -, continuam certamente a circular e a fazer a vez de ideias. Mas são apenas simulacros de ideias que satisfazem unicamente a legião daqueles que as não têm.

Tirando isto, o que sobra? No vazio, o ridículo com possibilidades grotescas, como aquele com que o ministro da Defesa, Dr. Azeredo Lopes, resolveu com notável persistência transgredir os limites comuns. Vê-lo na televisão, falando ou até calado, na bancada do governo, tornou-se, neste pobre mundo da política portuguesa, tirando uma catástrofe ou outra ditada pela incúria governativa ou pelas cativações do ministro das Finanças, um dos únicos espectáculos que merece alguma atenção. No mais extremo deserto, bem simbolizado pela ignorância em que toda a gente vive do nome dos actuais ministros (quem é, por exemplo, o ministro da Economia? – juro que não me lembro), o Dr. Azeredo Lopes brilha como nunca de certeza sonhou brilhar, por mais altas que fossem as suas ambições. E convém reconhecer que esse brilho o merece por inteiro. Toda a história dos paióis de Tancos, até aos últimos episódios, que incluem a admissão pelo seu ex-chefe de gabinete de ter recebido um relatório em que o embuste da descoberta das armas roubadas lhe era revelado, justifica uma notoriedade que nada mais, em sítio algum, teria qualquer razão de ser. O ex-chefe de gabinete transmitiu-lhe a informação? Não a transmitiu? Em qualquer dos casos, tudo parece um convite a jovens empreendedores para iniciarem uma carreira de espiões no ministério da Defesa. A confusão e a inépcia que lá reinam são tão grandes que deve ser fácil obter, a mando da mais obscura potência, uma ou outra informação vantajosa sobre as nossas Forças Armadas, partindo do princípio que alguém esteja interessado.

Mas, convenhamos, é pouco para suscitar interesse pela política caseira, além do justo medo que nos voltem a mergulhar em mais uma crise. Não é, voltando ao princípio deste artigo, que se exija dos políticos que nos apresentem concepções da sociedade de uma impecável nitidez e que mobilizem, como se diz, a população. Não se exige, nem sequer, provavelmente, se recomenda muito. As coisas nesta matéria são, de direito e de facto, equívocas, e uma boa dose de flexibilidade é até saudável. Mas também não convém exagerar. Porque a total ausência de debate real e não apenas postiço e nominal sobre projectos de sociedade tem pelo menos duas consequências desagradáveis: primeiro, o afunilamento da política nos mais ou menos secretos movimentos de ascensão social promovidos à pala das carreiras partidárias, de que há já hoje em dia uma colossal lista de exemplos, tendo como resultado possível um aumento da pequena, média ou grande corrupção; e, segundo, a deslocação das paixões políticas para as margens do quadro do debate político saudável. Não estou em nada preocupado com o regresso do “fascismo” ou qualquer coisa desse género, uma conversa que que é apenas mais um exemplo da circulação dos ídolos da tribo, que nos impedem de olhar com atenção e algum discernimento para a sociedade. Mas não é preciso atingir tais extremos para chegar a situações pouco recomendáveis.

Algum debate ideológico parece, portanto, desejável, fora dos círculos restritos da gente que por prazer ou dever profissional a ele se dedica. Mas como esperar uma coisa dessas das mediocridades que ocupam os lugares cimeiros da nossa cena política? Dos “afectos” de Marcelo? Da “habilidade” de Costa? Da “seriedade” de Rio? Mais vale esperar pela atribuição de todos os prémios Nobel, no mesmo ano, a ditosos filhos da pátria lusitana. Tudo acompanhado, é claro, por feitos incomensuráveis da nossa selecção e de todos os “grandes” do futebol nacional. Por outras palavras: decidirmos em grupo entrar gentilmente na boa noite de uma mansa loucura.

Solução? Esperar que esta gente se vá embora e que apareçam (ou avancem) nos partidos indivíduos dotados de uma convicção ou outra e que discutam entre si, com alguma racionalidade, caminhos diversos para a nossa sociedade. A necessidade da liberalização e os seus limites, por exemplo. Ou as diversas concepções de justiça social que competem entre si. E outras coisas assim. Não, é claro, como académicos encartados, mas como cidadãos curiosos e informados com gosto pela acção. Será ingenuidade pensar que algo deste tipo pode acontecer? Pelo caminho que as coisas vão, arrisca-se a ser. Ao mesmo tempo, é possível ver aqui e ali alguns políticos que possuem essas qualidades. Se há liberdade em Portugal é pelo menos teoricamente possível imaginar que possam algum dia vir a substituir a mediocridade reinante.

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