Há uma maldade que não podemos fazer a António Costa: chamar-lhe original e imprevisível. O nosso primeiro-ministro tem a virtude de não aprender com os erros (muito menos reconhecê-los ou pedir desculpa) e repete-os amiúde. Faço-vos o obséquio de vos lembrar alguns casos.

Primeiro. Para António Costa os problemas difíceis nunca têm solução. Aquilo que Costa não sabe, não tem engenho ou vontade de resolver é, naquela mente maravilhada com a sua própria argúcia, irresolúvel. Segundo Costa, ‘a solução c’est moi’. Foi assim com as cheias de Lisboa. Houve inundações na cidade? Pois bem, correu a dizer que nada havia a fazer, os lisboetas que se habituassem. Foi assim depois de Pedrógão: tinha corrido tudo lindamente na resposta do estado, a culpa é do downburst e isto e aquilo. E foi assim depois das mortes dos fogos de outubro. Todos temos ainda pesadelos (adormecidos ou acordados) com Costa garantindo-nos que aquela noite de 15 de outubro se repetiria, fora feito o possível.

Segundo. A festarola socialista. No dia das inundações de Lisboa (já aqui lembrei), Costa estava em festa na sua campanha para a liderança do PS. Depois dos sessenta e cinco ou sessenta e seis mortos de Pedrógão, Costa apareceu todo sorridente na apresentação de candidatura de Fernando Medina. De seguida foi a banhos.

Terceiro. No Natal do ano passado Costa providenciou-nos uma mensagem natalícia num jardim de infância. Agora, depois de cento e dez pessoas mortas em incêndios florestais devido a grosseiras falhas de prevenção (olhar para as previsões meteorológicas, por exemplo) e da proteção civil (ambas com responsabilidade do governo pela tutela, pelas nomeações e pela inércia), Costa faz-se entrevistar por uma televisão num cenário propagandístico de um quartel de bombeiros, com brinquedos para apagar fogos espalhados pelo chão.

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A encenação, pelo nível de surrealidade, lembrou-me um episódio do Sexo e a Cidade. Samantha, a mais desinibida sexualmente das quatro amigas, estava alegremente a ter sexo num quartel de bombeiros com um dos bombeiros que lá trabalhava quando foram surpreendidos pela sirene, os colegas apareceram, os carros zarparam para apagar um fogo e ela terminou nua (mas com stilettos) no meio do quartel. Em todo o caso, ter sexo casual contra um carro de bombeiros é, apesar de tudo, menos indecoroso que um primeiro ministro entrevistado num cenário de brincadeira cento e dez mortos depois.

Percebo que o primeiro-ministro nos esteja a enviar mensagens pouco subliminares de que, tal como as crianças, vive num universo onde mistura fantasia e realidade. Caso pretenda continuar com esta sinceridade cénica, eu, que faço tudo por amor ao meu país, disponibilizo-me já para emprestar o quarto do meu filho mais novo para a próxima comunicação de Natal de Costa. O quarto tem quantidades apropriadas de legos e carros (incluindo de bombeiros – Costa pode brincar dez minutos com eles quando terminar a sua proclamação). Não ofereço o quarto do filho mais velho. Lá abundam telas, papel para aguarelas e material de pintura e, parecendo que não, isto aponta para atividades e talentos demasiado densos para a espessura de papel vegetal de Costa. Não precisam de agradecer.

Compreendo também que António Costa esteja a exorcizar um trauma de infância. No livro Viver Pela Liberdade, de Maria Antónia Palla e Patrícia Reis, conta-se, à página noventa e sete, como a mãe de António Costa lhe ofereceu uma boneca para brincar, a Antonieta. (As maluquices de importunar crianças por causa do sexo de destino dos brinquedos não apareceram com as diletantes do século XXI.) A criança António Costa não gostou (tem a minha compreensão e empatia). A sua mãe, então, quiçá pretendendo juntar uma pitada de indignação anticolonial para tornar o boneco mais apelativo, deu-lhe em substituição uma boneca ‘escurinha’. Porém o menino António continuou a rebelar-se da tarefa de ir deitar a boneca todas as noites. Só depois disso Maria Antónia Palla se conformou que o filho preferia bolas e carrinhos.

Repetindo-me, percebo a angústia que Costa passou na infância. De facto, as crianças não devem ser expostas às alucinações dos adultos que, em prol da igualização dos sexos, atropelam as inclinações infantis. Em todo o caso, preferia que Costa processasse esta difícil experiência infantil em conversas com amigos, se necessário em sessões com profissionais de saúde, mas que entendesse que os momentos em que comunica com o país não têm como finalidade serem ocasiões terapêuticas.

Podemos ridicularizar Costa (e a TVI) pelo cenário da entrevista. Mas não esqueçamos que estas ações de propaganda são a única preocupação que o primeiro-ministro demonstrou. Depois de Pedrógão, Costa limitou-se a pedir inquéritos de fachada a vários organismos. Deliberadamente nada mais fez, calculadamente não trabalhou para evitar repetições, porque fazer alguma coisa, impor mudanças ou inverter políticas seria assumir que a resposta a Pedrógão tinha sido faltosa e deficiente. Costa preferiu correr o risco da repetição de mortes que dar ideia à opinião pública de responsabilidade por incompetência do governo nas mortes de Pedrógão.

Posto isto, talvez o melhor cenário para a próxima aparição televisiva de Costa seja a catedral de Cantuária. Foi lá que em 1174 o rei Henrique II se deixou chicotear como penitência.