Antes de ir ao cerne da questão, convém contextualizar no tempo as medidas em vigor no actual estado de emergência. No dia 14 de Janeiro, o Governo promulgou o Decreto 3-A/2021, a que se passou a chamar “confinamento light”. Neste Decreto, o Art.º 4º que versava sobre a obrigação de permanecer em casa, remetia a actividade desportiva para os termos do Art.º 34º, de acordo com o qual estava permitida a prática desportiva individual ao ar livre enquanto excepção ao dever de permanência na residência. Essa excepção incluía courts de ténis e campos de padel ao ar livre, bem como campos de golfe por exemplo, além do surf, obviamente.

No dia 19 de Janeiro saiu o Decreto 3-B/2021, que aumentava as restrições e encerrava todas as instalações desportivas ao ar livre no seu Anexo I.

Já na primeira versão do Decreto, e de acordo com o Art.º 35-A, ficava à discricionariedade dos presidentes das câmaras municipais o encerramento de praias, paredões e outras estruturas ao ar livre. Seja como for, dia 22 de Janeiro saiu uma nova alteração ao mesmo Decreto, desta vez o 3-C/2021 e, no que respeita à prática do desporto individual, a única alteração mantém-se a prevista no 3-B/2021, ao encerrar instalações como campos de golfe e courts de ténis ao ar livre, entre outras. Para o efeito, podemos considerar que no actual estado de emergência vigora o que está explícito no decreto de 19 de Janeiro.

Calhou, que no fim de semana de 16 e 17 de janeiro estiveram dias de sol, embora frios. Naturalmente, as pessoas decidiram passear ao ar livre e praticar desporto… corrida, ciclismo, surf, etc. “Aqui D’El Rei!”, gritou a metade hipocondríaca da população que, embora se passeasse como os outros, publicou vídeos das “multidões” e deu largas à indignação nas redes sociais pela irresponsabilidade alheia.

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Por um lado, sob a pressão dos herdeiros dos informadores da PIDE, por outro, levados pela sua própria hipocondria e cobardia, autarcas como os presidentes das câmaras de Cascais e de Matosinhos decidiram interditar paredões e praias e proibir as pessoas de sequer os atravessarem. E é aqui que entra a questão do surf enquanto actividade desportiva.

De acordo com o Decreto de 14 de Janeiro e subsequentes alterações, a prática do surf e de outros desportos individuais é permitida e é uma das excepções ao dever de permanência na habitação, na zona de residência ou até no concelho, no respeito pelas recomendações da DGS, da mesma forma que o trabalho ou a assistência a idosos são excepções a esse dever. É um facto e o decreto em vigor não deixa dúvidas quanto a isto.

Ao vedarem o acesso às praias, os presidentes das câmaras de Cascais e Matosinhos não proíbem a prática do surf porque sabem que não lhes foi atribuída competência para tal. Usam assim um Catch 22: o surf é livre… mas não é permitido aceder às ondas. É como dizer que se pode praticar corrida na rua, mas não sair da cozinha de casa. Fazem isto sem qualquer base científica e na total ausência de bom senso (existem estudos científicos que provam a eficácia da água salgada na neutralização dos vírus), ou seja, não é compreensível que não se possa aceder às ondas para a prática de um desporto expressamente permitido nos decretos emitidos pelo Governo, sem considerações sobre deslocação entre concelhos ou zona de residência.

Na Câmara de Matosinhos têm mantido um silêncio que revela ao menos algum pudor. Já o presidente da Câmara de Cascais, tanto nas redes sociais como em vídeo-chamadas em sessão de perguntas e respostas aos munícipes, revela toda uma predisposição totalitária e a maior falta de bom senso, consonantes com os regimes de extrema-esquerda que tanto gosta de criticar.

Dizendo, inclusive que, embora concorde que não existe propagação da doença no surf, há surfistas que infringem “leis nacionais”, o que é uma rematada mentira. Não existe nenhuma lei nacional que impeça a prática do surf! O que existe é um Catch 22 engendrado por Carlos Carreiras e outros autarcas, vergonhosamente aproveitado também pela Polícia Marítima, por razões apenas compreensíveis como tentações totalitárias e abuso de poder. Isto, sobretudo no caso de Cascais, que é o “berço” do surf nacional, vindo de um autarca que tanto soube aproveitar, quando lhe foi conveniente, a imagem da “tribo” que diz conhecer bem.

Não seria mais lógico reconhecer o papel positivo dos milhares de praticantes de surf ao longo da costa portuguesa, que salvaram outras tantas milhares de vidas ao longo dos últimos 40/50 anos, criando corredores de passagem pelos areais para acesso às ondas, o seu verdadeiro objectivo?!… Será que a humildade e o reconhecimento de um erro custa assim tanto?!… É o mesmo que proibir a venda de tabaco por poder causar cancro de pulmão… ou o uso de viaturas por causarem acidentes de viação… ou proibir os cafés e restaurantes de venderem bebidas para take away por poderem causar ajuntamentos à sua porta… esperem, este último exemplo não pode ser utilizado… é que não se entende e, sobretudo, roça o claro exercício do pequeno poder. Com um objectivo claramente incompreensível e patético. Assim lhes responda a comunidade surfista quando chegar a hora de o fazer.