Se não se importam, começo este texto com a tradicional e obrigatória declaração de interesses espiritual: infelizmente, não sou crente; de resto, tanto quanto me lembro, nunca fui crente. Quer isto dizer que a minha vida não se alteraria um milímetro se D. Manuel Clemente decretasse que os católicos tinham de adoptar o veganismo, que ficavam obrigados a rezar o terço enquanto contemplavam o último artigo sobre “economia” do dr. Louçã, ou que eram forçados a acordar todas as manhãs ao som de Tony Carreira.

De qualquer forma, mesmo com esse distanciamento em relação à Igreja, fiquei perplexo com o excitado alvoroço provocado pela nota do cardeal patriarca sobre a vida sexual dos recasados. As perguntas dos indignados foram todas variações de uma mesma formulação: porque é que a Igreja se quer meter num tema tão importante para as pessoas como o sexo?

A questão, obviamente, está de pernas para o ar: a Igreja não se mete nesse tema apesar de ele ser importante — mete-se nesse tema precisamente porque ele é importante. Nos temas irrelevantes, a Igreja não tem por que se preocupar e os crentes não têm por que hesitar.

Além de estar de pernas para o ar, a pergunta está equivocada nos seus fundamentos. Parte do princípio de que os católicos aspiram ao individualismo religioso e rejeitam qualquer intromissão de um pretenso pastor na sua vida alegremente atomizada. Mas, na realidade, um católico que pretende viver a sua vida na Igreja (repito: na Igreja) procura uma orientação que, pela sua própria natureza, terá que ser colectiva e — terrível palavra para os não crentes, como eu — superior.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

E isto não se passa apenas na Igreja Católica. Os críticos de D. Manuel Clemente deviam atentar no seguinte: se o facto de um cardeal pregar sobre sexo é algo tão terrível, tão castrador e tão absurdo, então porque é que todas as grandes religiões — todas — o fazem? E porque é que o fazem, esmagadoramente, de forma restritiva? Porque será?

Não pretendo explicar dois mil anos de História em dez linhas (até porque já houve quem o fizesse aqui no Observador), mas talvez não seja ocioso lembrar que a religião é, entre outras coisas, uma permanente tentativa de superação do corpo pelo espírito. Porque, como sabemos, o primeiro desaparece, mas o segundo, para os crentes, não. E, para que essa superação seja possível, é preciso que o ser humano seja capaz de se libertar dos desejos e dos instintos.

E não se trata apenas de “continência” no sexo. As grandes religiões também recomendam, a espaços, o jejum como forma de purificação e demonstração de fé. E no caso da Igreja Católica há ainda, por exemplo, a abstenção de comer carne na Quaresma e na Quarta-feira de Cinzas. Isto não é feito porque se gosta de sofrer, mas porque se pretende atingir um estado onde o sofrimento não existe.

Tudo isto é impopular? Talvez. Mas há um facto subtil que escapa a muitos críticos: a Igreja não é um partido político. Não procura mais votos, mais mandatos, mais poder. Procura e aspira à verdade, chegue ela a 10 milhões de fiéis, a 10 mil ou a 10. Isso não significa que a Igreja deva ignorar o mundo onde vive, como é evidente. Mas significa, seguramente, que não se deve intimidar com as indignações recorrentes dos tempos modernos. Até porque essas indignações são potencialmente intermináveis. Por estes dias, a pergunta que é feita à Igreja é: “Porque é que se mete no sexo?”. Mas, depois desta, poderiam vir outras:

1) Com que legitimidade é que a Igreja quebra a separação de poderes e se mete na aplicação do Código Penal, com o 5.º mandamento (“Não matarás”)?

2) A que propósito é que a Igreja se imiscui no conflito laboral da Autoeuropa, com o versículo 10 do capítulo 20 do livro do Êxodo (“Mas o sétimo dia é o sábado consagrado ao Senhor, teu Deus. Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro que está dentro das tuas portas”)?

3) Porque é que a Igreja dá opinião sobre a melhor forma de distribuição da propriedade, com o 7.º mandamento (“Não roubarás”)?

4) Quem é que a Igreja se julga para tentar regular as reuniões de condomínio, com o versículo 20 do capítulo 5 do livro do Deuteronómio (“Não prestarás falso testemunho contra o teu vizinho”)?

5) Com que autoridade é que a Igreja se envolve na forma como os adeptos de futebol se dirigem aos árbitros, com o 4.º mandamento (“Honrar pai e mãe”)?

Tudo perguntas legítimas, tudo questões mobilizadoras. Alguém, por favor, obrigue imediatamente o cardeal patriarca a explicar-se sobre estes assuntos.