Há números que valem mais do que mil palavras. A verdade, como aprendemos com a sabedoria popular, vem sempre ao de cima como o azeite. À medida que o tempo passa e chegam os dados, percebemos como é que foi possível repor os salários da função pública e eliminar cortes de pensões e, ao mesmo tempo, reduzir o défice público em 2016. A dimensão dos cortes mascarados de “cativações” ultrapassa o que se fez na era da troika.

Os números foram divulgados pela UTAO (Unidade Técnica de Apoio Orçamental) na análise à proposta de Orçamento do Estado para 2018 e são reveladores da táctica que foi usada para o Governo tornar o que parecia impossível realizável.

Quando se olhou para o Orçamento de 2016, as análises independentes foram todas no mesmo sentido: o Governo não iria atingir os objectivos de redução do défice público, ameaçando assim a saída de Portugal do Procedimento por Défices Excessivos. (Permitam-me que fale na primeira pessoa para dizer que também fiz essa avaliação) . Mas a realidade desmentiu essas análises. O Governo atingiu os objectivos e congratulou-se com isso. E quem alertou para riscos que não se confirmaram foi naturalmente criticado, por vezes de forma agressiva. Entre os vários alvos dessas criticas esteve o Conselho de Finanças Públicas

O problema das análises, que deram como impossível de cumprir os objectivos de défice público de 2016, é que baseou as suas avaliações no que tinha sido a prática normal da execução orçamental durante as últimas décadas. As cativações ficavam sempre dentro de margens que não punham em causa os resultados das análises ao Orçamento. Ou seja, apesar da crescente complexidade dos documentos orçamentais, cada vez mais difíceis de analisar, era ainda suficientemente transparentes para, a partir da informação pública, conseguir avaliar os riscos que o Governo estava a correr.

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Tudo mudou com o Governo de António Costa e com Mário Centeno como ministro das Finanças. A austeridade ficou escondida sob a forma de “cativações” que deviam na realidade designar-se como cortes de despesa. A promessa de “virar a página da austeridade” era afinal dissimular a austeridade.

Os dados organizados pela UTAO e que se podem ver no quadro mostram bem a dimensão dos cortes realizados na despesa que estavam mascarados sob a forma de cativações. O ano de 2016 bateu o recorde nesse tipo poupanças, ultrapassando folgadamente o que se fez na era da troika. O valor aproxima-se mais dos cativos finais verificados em 2010, quando o Governo de José Sócrates, com Fernando Teixeira dos Santos ministro das Finanças, tentava resistir ao pedido de ajuda externa e iludir as dificuldades que Portugal já enfrentava.

Claro que Mário Centeno tem razão ao defender as cativações como uma ferramenta de gestão. Mas as cativações foram muito mais do que isso, de facto constituíram-se como uma ferramenta de redução do défice público. Enquanto austeridade escondida, viabilizaram os acordos com o PCP e o Bloco de Esquerda, de reposição mais rápida dos rendimentos e, por essa via, garantiram que o PS fosse Governo.

Nada disto seria grave se estes cortes de despesa tivessem seguido uma estratégia de reforma do Estado ou se estivéssemos a sair de uma fase de prosperidade. Nada disso se verificou. Estes cortes são feitos depois de uma era de elevada contenção financeira dos serviços públicos e com o único objectivo de conseguir o apoio do PCP e do Bloco de Esquerda – que se recusariam a assinar uma estratégia de austeridade que não fosse disfarçada.

A tragédia dos incêndios pôs a nu essa estratégia de cortes já que obrigou a olhar para o Orçamento na perspectiva de um serviço específico. Este Governo dotou a protecção civil com menos recursos financeiros do que aqueles que tiveram na era da troika, como se pode ler neste trabalho do Observador, Fact checks. As verdades e enganos na moção de censura. Nunca saberemos o peso que teve a falta de recursos financeiros no que se passou nos incêndios deste Verão.

Não colhe também o argumento de que quem defende um Estado mais eficiente deveria congratular-se com a estratégia seguida pelo Governo. A defesa de um Estado que gaste bem é aquela que melhor garante serviços públicos de qualidade hoje a amanhã. Cortes realizados sob a forma de cativações, pelo contrário, ameaçam a qualidade dos serviços públicos. Os funcionários podem levar mais dinheiro para casa mas não conseguem garantir o mesmo serviço.

As já décadas de acompanhamento do Orçamento do Estado permitem concluir que é praticamente impossível que o PCP e mesmo o Bloco ignorassem a estratégia que o Governo estava a seguir. Se não o soubessem por via da análise do Orçamento do Estado – o PCP sempre teve excelentes deputados a analisar o Orçamento – tiveram com certeza conhecimento dos apertos financeiros dos serviços através de militantes ou simpatizantes. Quiseram também eles que a austeridade fosse escondida, como querem que se mantenha escondida toda a estratégia europeia do Governo nas matérias a que oficialmente se opõem.

A política da austeridade escondida altamente ameaçadora dos serviços públicos foi prosseguida pelo Governo mas teve a cumplicidade do PCP e do Bloco de Esquerda. Podem hoje competir pelo pódio de quem defendeu mais a reposição dos rendimentos mas todos estão a ser responsáveis pelo risco a que expuseram os serviços públicos. É aliás extraordinário que aqueles que dizem defender o Estado sejam os que mais o põem em causa.

Neste momento resta-nos apenas desejar que não aconteçam outras tragédias.