Primeiro, o Bob Dylan sugeriu a ideia de que era de uma presunção insuportável uma pessoa achar que Deus está do seu lado. Na penúltima estrofe da canção “With God On Our Side”, de 1964, disparava: “You’ll have to decide/Whether Judas Iscariot/Had God on his side”. A ideia era que qualquer mau carácter, incluindo o pior traidor, pode agir na convicção de que cumpre a vontade de Deus. Daqui saídos, a maior suspeita levantava-se já não sobre quem segue o Demónio mas sobre quem está hiper-convicto de que obedece ao Criador.

Mas depois, em 1975, o mesmo Bob Dylan veio a estar convicto de que lhe cabia agora executar os planos divinos. “I’m doing God’s work. That’s all I know.” Nem o Professor Cavaco Silva seria mais assertivo desejando concentrar-se no muito trabalho que sentia ter para fazer. Não devemos, portanto, tomar como eternas as declarações que fazemos nos nossos momentos mais pagãos. Afinal, o tempo tanto pode testar a nossa fé como de seguida oferecê-la em maior abundância, sugeria-nos o volte-face Dylanesco.

De lá para cá não foram poucos os retratos que a literatura, a música e o cinema nos pintaram de alucinados, homicidas, assassinos em série, terroristas, e outros neste elenco de horrores contemporâneos, que declararam não passar de meros executantes de ordens realmente superiores, neste caso, celestes mesmo. Ou seja: quando a desgraça é grande o rasto frequentemente nos leva gente de religião extrema. E isto a um ponto tal que começa a parecer que qualquer religião, por peculiar que seja, extrema acabará por ter de ser. O maior perigo é julgar ter Deus do seu lado.

Mas será este um problema exclusivo dos velhos crentes? E quem não tem Deus, o que tem do seu lado? Talvez arranje um substituto tão ou mais eficaz: por exemplo, a História. Quando Deus se ausenta, pode aparecer a História, exactamente assim, com H grande, para nos garantir um propósito preferível às histórias com h pequeno, demasiado irrelevantes. E assim a religião do “lado certo da História” ofereceu o antídoto para a religião do “Deus ao nosso lado”. Muda-se a companhia, mas e a presunção? Será muito diferente? Não estou persuadido.

Afinal, é muito mais a partir desta religião do lado certo da História que as anátemas são hoje pronunciadas. Anátema é o estado que descreve quem é colocado fora da comunhão. Com um passado obviamente religioso, o anatemizado deixava de poder ser contado entre os fiéis. O anatemizado é hoje todo aquele que, sendo colocado além do consenso moral mais abrangente, vive por conta e risco do facto de não comungar da assembleia dos do lado certo da História.

Noto que por vezes estranham que use frases como “Deus conduziu-me a…”, “senti-me orientado por Deus para…” ou o mais assustador e singelo “Deus disse-me…” Acho curioso que essa surpresa venha das mesmas pessoas que não hesitam ver à distância o lado certo da História em dilemas que sempre aconselharam prudência aos sábios mais antigos. Eu acho que estou com Deus, os outros acham que estão com a História—no fim de contas, estamos todos acompanhados de parceiros razoavelmente transcendentes. Por que há-de o meu ser pior do que o deles?

Admito que qualquer intruja com comichões místicas se pode tomar como unha e carne com Deus—parece-me até bastante bíblico desconfiar pedagogicamente dos grandes amigalhaços do Altíssimo, sem dúvida. Não consigo é aceitar o milagre de os amigalhaços do lado certo da História se verem isentos desse mesmo imposto de suspeita.

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