1 Tinha 17 anos quando fiquei fascinado com o filme “JFK” de Oliver Stone — e acreditei convictamente na sua teoria sobre o assassinato de John Kennedy. Depressa percebi ao ler algum material historiográfico como o realizador tinha manipulado alguns factos para dar uma alegada sustentação à sua teoria conspirativa — uma teoria que faria as delícias das redes sociais, caso o Facebook e o Twitter existissem em 1991.

Fiquei exatamente com a mesma sensação ao constatar como os criadores da série “The Crown” retratam a primeira-ministra Margaret Thatcher — uma espécie de jezebel política, gélida e insensível ao drama humano que liderou durante onze anos o Governo do Reino Unido sem que, a acreditar nos autores, as suas políticas tivessem promovido o bem-estar económico e social dos britânicos. Infelizmente para um fã da série como eu, os factos históricos revelam precisamente o oposto do que os guionistas querem fazer crer.

Um episódio que está longe de ser o único quando a indústria cultural é claramente dominada pela esquerda nos Estados Unidos e no Reino Unido. Os republicanos e os conservadores têm a tendência para serem liderados por vilões. Os democratas e os trabalhistas, pelo contrário, só têm militantes nascidos do lado certo do força — e nem sequer precisam de um Jedi. Algo que também acontece em Portugal, obviamente — sendo até agravado com o facto de termos uma comunicação social menos plural do que a americana e a britânica.

2 Vamos às manipulações. A primeira começa precisamente pela caracterização física da personagem. Margaret Thatcher aparece desfigurada, um queixo ligeiramente descaído, as rugas acentuadas e um tom de voz superior e absolutamente irreal face a quem ouviu a verdadeira Thatcher a falar — basta ir ao youtube, pesquisar qualquer discurso e declaração e comparar; podem começar por aqui. Até o andar de Thatcher é exagerado para parecer alguém muito mais velho do que na realidade era.

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O objetivo é simples: apresentar uma personagem grotesca que liderou políticas malévolas.

Um pormenor relevante. A personagem Thatcher é representada por uma ótima atriz que também é conhecida pela sua beleza física. Quando saiu a notícia de que Gillian Anderson iria encarnar a líder conservadora, muitos se preocuparam com o facto de uma mulher bonita como Anderson poder “humanizar” Thatcher. Talvez isto explique porque razão a personagem aparece fisicamente desfigurada.

A segunda manipulação, mais grave, passa por enfatizar apenas alguns dos elementos negativos das suas políticas, esquecendo o lado positivo.

Margaret Thatcher chegou ao poder em 1979 quando a Grã Bretanha tinha uma inflação de 13% — o valor anual chegou a ser de 24% em 1974 — e uma economia estagnada em que o setor público tinha um peso brutal na economia, com os sindicatos influentes nos Trabalhistas a serem uma força de bloqueio a qualquer espécie de reforma.

Através das suas políticas económicas, Thatcher reduziu a inflação até aos 3,9% em 1988 — tendo subido entre 89 e 90 para os 6,9% — promoveu uma queda sustentada do desemprego até atingir os 6,9% e promoveu um crescimento económico médio de 3,1% entre 1979 e 1990, sendo que entre 86 e 88 o crescimento médio foi de 4,5%. Objetivamente, os britânicos reforçaram o seu poder de compra significativamente. Há estudos económicos que calculam a subida real do PIB entre 1979 e 1990 no valor total acumulado de 28% (1979 = 100).

E como é que o conseguiu? Com uma política monetária bastante agressiva e um grande controlo dos gastos públicos, conjugada com uma liberalização da economia.

Por exemplo, Thatcher teve a coragem de encerrar ou privatizar muitas minas que pertenciam a empresas públicas completamente falidas. O que lhe valeu uma oposição feroz dos sindicatos. A mais célebre das greves dos mineiros demorou praticamente um ano mas Thatcher nunca deixou de lutar pelo sucesso das políticas em que acreditava. O custo social foi elevado mas se essa decisão não tivesse sido tomada, aquelas empresas públicas falidas continuariam a consumir recursos dos contribuintes que podiam utilizados de forma muito mais racional noutros setores.

Basta pensarmos no que está acontecer com a TAP em Portugal para percebermos a importância de ter coragem política para ganhar o futuro de um país.

3 Apesar da Rainha Isabel II ser a principal protagonista da série “The Crown”, a temporada 4 tem como objetivo descrever os anos do thatcherismo mas também aqui falha assombrosamente ao não referir aspetos fundamentais daqueles onze anos.

Por exemplo, mostra, e bem, o atentado dos nacionalistas irlandeses contra Lorde Moutbatten — uma personagem histórica muito relevante na família real — mas não assinala a tentativa de assassinato de que Thatcher foi alvo pelo mesmo IRA em 1984 em Brighton antes de um congresso do Partido Conservador.

Thatcher lutou ferozmente contra os terroristas do IRA para que o Reino Unido ganhasse a paz — o que não é minimamente enaltecido na série.

Outras manipulações passam por dois aspetos fundamentais do thatcherismo: a luta contra o apartheid e a Comunidade Económica Europeia.

Comecemos pelo primeiro. A série concentra-se exclusivamente no episódio de uma reunião da Commonwealth em que Thatcher é a única chefe de Governo a opor-se a uma censura clara do regime de apartheid na África do Sul — insinuando mais à frente que o fez porque o seu filho Mark tinha negócios naquele país. É muito desonesto insinuar isso.

É verdade que a primeira-ministra inglesa sempre se opôs a sanções económicas contra a África do Sul por recear que fossem contraproducentes mas também porque queria manter as relações económicas com a maior economia africana. Mas mesmo assim Thatcher lutou contra o apartheid, presssionando diretamente os governos sul-africanos a eliminarem o sistema de discriminação racial e a libertarem Nelson Mandela.

A prova disso é que Mandela, na sua primeira visita a Londres após ser libertado, afirmou o seguinte em 1990 após ser recebido pela líder conservadora: “Ela [Margaret Thatcher] é uma inimiga do apartheid. Temos muito a agradecer-lhe”.

Além disso, basta ler peças históricas do The Guardian e do The Independent — dois jornais do centro-esquerda e profundamente anti-Thatcher para perceber que a realidade é uma coisa, a ficção é outra.

Thatcher sempre acreditou na Comunidade Económica Europeia e no Mercado Livre. Sempre foi uma europeísta convicta no campo económico e, de forma natural, sempre tentou defender os interesses britânicos, tentando fazer com que o cheque britânico fosse o mais reduzido possível — como todos os contribuintes líquidos europeus, como a Alemanha, França ou Holanda tentam fazer hoje em dia.

Discordava do Tratado de Maastrich e desconfiava muito da moeda única, não querendo que o Banco Central Alemão impusesse as suas regras e visão ao Governo britânico. Mas mesmo assim o Reino Unido aderiu ao Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio em 1990, o mecanismo que antecedeu a criação do euro e do qual os britânicos saíra em 1992 já com Thatcher fora do poder.

Margaret Thatcher opunha-se, sim, à União Política. Não queria que o Reino Unido perdesse soberania para uma instituição que seria liderada na prática pela Alemanha e pela França — como veio a acontecer. Uma desconfiança natural de uma mulher que, tal como a Rainha Isabel II, nasceu em 1925 e passou pela II Guerra Mundial.

O Reino Unido sempre desconfiou da Europa mas não foi nos governos Thatcher que foram feitos referendos à permanência do Reino Unido na CEE. O primeiro foi em 1975, promovido por um governo trabalhista, e o segundo foi em 2016 com David Cameron.

Mas talvez a maior falha de todas em “The Crown” é a forma  grosseira como o seu papel na luta contra o comunismo é omitido. Se não fosse a parceria entre Ronald Reagan e Margaret Thatcher, a União Soviética não teria sido derrotada, o muro de Berlim não teria caído e a liberdade não teria chegado tão depressa aos milhões de húngaros, checos, eslovacos, polacos, búlgaros, romenos, lituanos, estónios, letões, ucranianos e tantos outros povos eslavos que estavam presos no lado de lá da Cortina de Ferro.

4 É uma pena que uma série de tanta qualidade como “The Crown” tenha cedido a preconceitos ideológicos. Margaret Thatcher foi uma mulher que subiu a pulso na vida, licenciando-se em Química pela Universidade de Oxford e tendo sido eleita pela primeira vez para a Câmara dos Comuns (a câmara baixa do Parlamento britânico) aos 34 anos.

No Reino Unido quem nunca gostou de Thatcher sempre se referiu a ela como a “filha do merceeiro” — como se a sua condição social a impossibilitasse de chegar a primeira-ministra.

Com as devidas diferenças, um pouco como aconteceu com Cavaco Silva em Portugal.

Essa espécie de racismo social — que tem muito a ver com uma sociedade estratificada como a do Reino Unido mas que nada tem a ver com uma sociedade com uma história muito recente de pobreza generalizada como a portuguesa — ainda hoje perdura. Com se uma pessoa com uma origem social humilde só possa ser de esquerda.

No Brasil, e a propósito das classes desfavorecidas que votam na direita, até se criou a expressão “pobre de direita”.

Mas além dessa discriminação social também há a questão do género e as manipulações que os media e o setor cultural costumam fazer sobre as mulheres de direita. Como se as mulheres independentes, fortes e com sucesso só possam ser progressistas — como a neo zelandesa Jacinda Ardern. E as conservadoras só sejam uma espécie de adversárias do desenvolvimento humano — e de preferência com um bigodinho à Hitler, como aconteceu inúmeras vezes com as caricaturas de Angela Merkel.

Margaret Thatcher foi a primeira mulher britânica a liderar um Governo mas, infelizmente, para a intelligentsia que domina a área cultural no Reino Unido — e em muitos outros países, como Portugal — não era de esquerda. Graças a Deus!, digo eu.