Parece que foi ontem. Grávida de oito meses, numa sala de espera do centro de saúde, aguardava que me chamassem, nervosa com a quantidade de análises que mais uma vez teria de fazer em jejum. Lembrei-me de Elizabeth Holmes e da sua promessa de centenas de análises com uma só gota de sangue. Seria de facto tão conveniente para mim naquele momento… Mas a promessa de Holmes tinha falhado redondamente e, enquanto eu esperava pelas inevitáveis análises, ela esperava a sua sentença de prisão.

Em 2003, Elizabeth Holmes, com apenas 19 anos, deixou o seu curso em Stanford por concluir e fundou a start-up Theranos, uma empresa de análises de sangue sediada em Silicon Valley. Holmes alegava ter desenvolvido uma tecnologia revolucionária de análises de sangue que poderia realizar uma ampla gama de exames médicos usando apenas uma gota de sangue retirada da ponta do dedo do paciente. Aquela jovem visionária rapidamente revelou ser também uma extraordinária mulher de negócios, com a capacidade de atrair centenas de milhões de dólares de investimentos e grandes parcerias sem nunca ter verdadeiramente demonstrado as capacidades da tecnologia.

Mais tarde, soube-se que não funcionava como prometido e que a Theranos estava a utilizar máquinas de teste de sangue disponíveis comercialmente para realizar a maioria dos seus testes. Holmes e o seu COO foram indiciados por várias acusações de fraude e conspiração e, em 2021, foi considerada culpada por quatro acusações de fraude e conspiração, estando agora iminente uma pena de mais de 11 anos de prisão.

O caso Theranos tem atraído muita atenção dos media nos últimos anos. Há inúmeras opiniões e especulações sobre as intenções e percurso desta mulher. Terá sido bem-intencionada no início e perdido a integridade pelo caminho? E, se sim, qual foi a linha que ela ultrapassou e permitiu esta fraude escalar e depois explodir?

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Um empreendedor com uma visão inovadora deve ter uma dose de “loucura” e pôr todo o seu empenho em cumprir essa visão. A captação de bons investimentos e parcerias quando há alguma evidência de que o produto irá existir é aceitável e necessária para lá chegar. Mas, neste caso, Holmes foi sendo avisada por inúmeros especialistas da impossibilidade absoluta de atingir uma tecnologia com as características que ela prometia. Ou seja, houve um momento em que ela se terá apercebido de que não ia chegar ao produto final, mas continuou a agir como se já lá tivesse chegado. Chegou até a manipular ou forjar resultados de testes para esconder falhas na tecnologia perante investidores e empresas parceiras. Vemos assim um defraudar consciente de todos os stakeholders, desde os colaboradores aos investidores. Para Holmes, os fins justificaram os meios.

Na sua procura incansável pelo sucesso e pela ambição de revolucionar o sector da saúde, não hesitou em facilitar soluções e usar meios questionáveis ​​para atingir seus objetivos, incluindo enganar investidores, funcionários e o público sobre as capacidades da tecnologia da Theranos. Para captar e reter investidores e grandes parceiros de negócios, Holmes mentiu e prometeu o impossível. Para manter parcerias lucrativas e presença no mercado, desprezou reguladores e ignorou pedidos de informação para aprovação legal. Para manter a empresa a funcionar sem que os seus problemas transparecessem para fora, criou um ambiente de trabalho tóxico e cheio de secretismo, onde os funcionários eram pressionados a trabalhar longas horas e enfrentavam retaliação se levantassem preocupações sobre as práticas da empresa. E, por fim, também os pacientes sofreram as consequências de resultados imprecisos e promessas vazias de análises ao sangue fáceis, acessíveis e convenientes.

Olhar para o percurso de Elizabeth Holmes, desde o começo, à ascensão e até à queda, leva a importantes reflexões sobre a vida das empresas. No caso da Theranos, Holmes assumiu riscos elevados ao continuar a promover a sua tecnologia mesmo sabendo que era impossível atingir o que prometia. Não olhou a meios para seguir as suas ambições e a sua mentira estendeu-se não só aos investidores, mas também aos clientes, parceiros e aos seus próprios colaboradores.

Talvez Holmes tenha acreditado que todas estas ações eram necessárias para atingir um fim bom. Mas, ao cometer ações desonestas e antiéticas, já estava a violar os princípios por detrás de querer melhorar o sector da saúde e salvar vidas.

A Theranos não conseguiu que os processos de análises ao sangue fossem agilizados e simplificados. Provavelmente, ainda terei de fazer muitas análises ao sangue. Mas, quando as fizer, lembrar-me-ei de que para um negócio florescer é preciso mais do que uma boa imagem e atração de investimentos. Pelo contrário, essa imagem deve corresponder a um percurso de integridade e a uma preocupação verdadeira por todos os intervenientes do negócio. Só assim é possível preservar uma conduta ética de boa reputação.

Para saber mais:

Livro Bad Blood: Fraude multimilionária em Silicon Valley, de John Carreyrou

Documentário da HBO The Inventor: Out for Blood in Silicon Valley (2019)