Uma verdade só é verdade quando é levada até às últimas consequências. Até lá não é verdade, é uma opinião
Virgílio Ferrreira, escritor português, 1916-1996

A mais pérfida maneira de prejudicar uma causa é defendê-la intencionalmente com más razões
Friedrich Nietzsche, filósofo germânico, 1844-1900

Escrevi-lhe no final de novembro do corrente ano. uma carta aberta, intitulada A resposta devida a quem disse o que não devia” e, volvidos dois dias, VªExª estava a visitar de surpresa o CHS, razão pelo que lhe entreguei em mão uma segunda versão da mesma, escassos minutos após ter sido publicada no site oficial da OM, pois, como é lógico, não tinha qualquer hipótese de adivinhar a sua imprevista, mas oportuna, embora tardia, iniciativa. Na reunião que se lhe seguiu, na presença do CA, da Direção Médica e de alguns colegas Diretores de Serviço, disse-lhe, olhos nos olhos, o seguinte: que um pedido de desculpas feito conforme presenciei, dizia muito acerca do caráter de quem o fazia, mas que, o mais importante era resolver as questões pendentes relativas ao CHS, sobretudo porque (ainda) estamos em tempos de pandemia. É sobre este último aspeto que ouso, por mero imperativo de consciência, voltar a dirigir-lhe mais uma refletida exposição, após ter verificado ontem as naturais hesitações e as lógicas angústias dos participantes em mais uma das reuniões da Comissão institucional para a COVID-19.

Como já foi abundantemente demonstrado, o CHS comunga, com os restantes Hospitais do SNS, de uma série de importantes insuficiências, mas não é menos verdade que tem outras que lhe dizem mais diretamente respeito, sendo que, todas elas pesam sobremaneira na resposta assistencial que é necessário dar todos os dias às populações, ainda mais, em plena recrudescência da pandemia.

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Assim, é notória a falta generalizada de camas para doentes com patologia aguda, sobretudo ao nível dos Cuidados Intensivos, a enorme dificuldade em drenar atempada e adequadamente os doentes com debilidades sociais ou os que estão necessitados de cuidados de recuperação funcional ou do foro paliativo, o défice acentuado de médicos de algumas especialidades, as graves insuficiências resultantes de instalações e de meios tecnológicos desconformes com a prática de uma medicina moderna, fruto de um desinvestimento gritante por parte do poder central que remonta há décadas, o facto de cada vez mais os Serviços terem que contar, para fazerem face à sua rotina, de equipas que incluem médicos contratados à tarefa ou de outros com horário reduzido, bem como aquilo que é consequência das gravíssimas disfuncionalidades que se verificam ao nível da Saúde Pública e dos Cuidados Primários e que se refletem muito negativamente ao nível hospitalar, pelo simples facto daqueles setores partilharem de idênticas insuficiências de meios humanos e logísticos.

Se, a isso, adicionarmos o facto de haver um envelhecimento acentuado da classe médica no SNS, a sua deficiente distribuição pelo território nacional em muitas circunstâncias e nalgumas especialidades, tal como a desmotivação avassaladora que os baixos níveis salariais condicionam, a par da frustração decorrente de não existirem as condições de trabalho que consigam propiciar a imprescindível realização profissional de cada um, só podemos concluir que estaremos muito próximo do ponto de rotura, sobretudo quando a geração entre os 60 e os 65 anos se começar a aposentar em catadupa.

O CHS debate-se, para além de tudo aquilo que referi até aqui, com o que resulta de um abandono por parte do poder central desde há mais de duas décadas, que se materializa num projeto de ampliação prometido há várias legislaturas, sem que tenha sido concretizada até agora, de um plano de obras que, se for concretizado conforme o anunciado, e se incluir a simples integração do Hospital Ortopédico do Outão conforme foi anunciado, resolvendo certamente alguns problemas, não deixará de criar muitos outros que só complicarão ainda mais a realidade cada vez mais precária da sua vivência diária.

A não serem resolvidos os problemas que aqui acabei de equacionar sumariamente, poderemos assistir, em breve, ao encerramento progressivo de valências até agora asseguradas por várias especialidades, quando não, mesmo, de alguns Serviços, porque poucos médicos irão, logicamente, querer vir trabalhar para o CHS, sobretudo se se tiverem que se deslocar de Lisboa, ganhando parcos ordenados, gastando uma parte significativa dos mesmos em transporte, perdendo várias horas no infernal trânsito rodoviário, para depois confrontarem-se-com uma realidade onde a precariedade dos meios auxiliares de diagnóstico é por demais gritante, a desadequação de algumas das instalações mais do que limitativa e a dificuldade em obter a colaboração de certas especialidades mais diferenciadas noutros hospitais, impeditiva, não raramente, de resolvermos efetivamente os problemas clínicos dos nossos doentes.

A pandemia, se alguma coisa condicionou de forma bastante ilustrativa, foi o pôr a nu todo este quadro de parcas perspetivas futuras, agravando a capacidade de resposta aos doentes que já recorriam anteriormente ao CHS e aos outros Hospitais do SNS. Só para exemplificar, no Serviço que dirijo há praticamente um quarto de século, as instalações da Unidade de Ambulatório são provisórias há cerca de 15 anos, estão a degradar-se vertiginosamente sem perspetivas credíveis de solução a curto prazo e o número de especialistas em janeiro de 2022, relativamente ao que existia em janeiro de 2021, será cerca de 40% inferior, o que nos coloca à beira de deixar de poder dar alguma ajuda significativa à luta contra a pandemia, bem como de deixar de responder, com a eficácia que sempre tivemos, ao nível da Consulta Externa descentralizada no HLA e nos Estabelecimentos Prisionais de Setúbal e de Pinheiro da Cruz, da Consulta do Viajante e da Direção do GCL-CIPRA e do PAPA, só para citar os seus aspetos principais.

O CHS, durante a segunda e a terceira fases da presente pandemia, teve de suportar, quase sem apoio significativo da hierarquia ministerial, um avassalador número de doentes e, presentemente, vê-se bastante mais limitado do que nessa altura, para dar resposta, em simultâneo, quer aos doentes COVID, cujo número está a aumentar substancialmente desde o início deste mês de dezembro, mas também a um inusitado número de doentes não COVID, o que torna muito mais difícil de conceber voltar a deixá-los para trás, como antes o fizemos, porque outra melhor solução não tivemos para lhes oferecer. Pergunto: Neste contexto, que político, que gestor se atreverá a propô-lo de novo publicamente? E a que preço?

É, pois, perante este quadro de magnânimas dificuldades, que me atrevo a refletir nos seguintes termos e a ousar fazer algumas propostas, ciente que é imprescindível ponderar bem as decisões que vierem a ser tomadas, assumindo-as depois com a necessária solidariedade institucional por parte de todos os envolvidos e, ainda, com transparência, com coragem e com coerência operativa.

Assim, proporia o seguinte:

  • Até ao final do primeiro trimestre de 2022
    1. abrir o mais rapidamente possível estruturas na comunidade, capazes de absorver todos os doentes não COVID que se mantêm atualmente internados, essencialmente por apresentarem limitantes debilidades sociais ou que necessitam sobretudo de reabilitação funcional ou de cuidados paliativos, para que todos os outros padecentes de patologia aguda, possam ser tratados convenientemente;
    2. Fazer o mesmo, em locais diferentes e com as condições adequadas por demais conhecidas, aos infetados com SARS CoV-2 com idêntica tipologia referida no ponto anterior, assintomáticos ou a necessitar de completar o tempo estabelecido para o respetivo protocolo de cura, mas sem condições habitacionais ou de suporte familiar para irem para o seu domicílio completar o resto do tempo previsto de isolamento social;
    3. Se as duas medidas anteriores não forem suficientes, pelo eventual, mas previsível, crescimento contínuo dos casos de COVID-19, passar a concentrar o seu tratamento num único hospital por cada ARS, dependendo obviamente da prevalência da infeção, da evolução epidemiológica e da respetiva gravidade clínica;
    4. Contratualizar, com estruturas dos setores Social e Privado, o tratamento dos doentes que se antevê não irem ter resposta em tempo útil no âmbito do SNS, sobretudo para a área não COVID.
  • A partir do último trimestre de 2022
    1. Assumindo que é expectável que venham a surgir, durante esse ano, vacinas mais eficazes e terapêutica medicamentosa antivírica com maior efetividade, inclusive, passível de ser administrada PO, quer no tratamento da infeção/doença, quer mesmo em estratégia de profilaxia pós-exposição, mantendo-se uma elevada cobertura vacinal e uma boa vigilância em termos da epidemiologia molecular evolutiva, se não surgirem novas variantes de escape aos meios diagnóstico, à imunização produzida pela vacinação, ou resistentes aos fármacos que viermos a dispor, não pondo em causa a manutenção das regras de segurança e de higiene básicas que se revelarem adequadas a cada contexto social específico, verificada que esteja a mais reduzida morbimortalidade desta infeção relativamente ao que se passou no início de 2021, porque não passar a encarar os doentes com COVID, como já o fazemos com os portadores do vírus influenza, pergunto?

É que, penso com sincera convicção, os cidadãos ditos “leigos”, os doentes não COVID padecentes de outras doenças bem mais prevalentes ou com maior gravidade clínica (algumas delas também transmissíveis), tal como, certamente, os agentes económicos, não irão continuar a entender ou a aceitar bem que, garantidas que estiverem as premissas acima enunciadas, se continue a fazer aquilo que temos estado a fazer (mas bem, entenda-se), mas que não é mais viável, ou sequer desejável, continuar a fazê-lo por muito mais tempo, como se nenhuma inovação científica tivesse ocorrido até agora. Se tudo for didaticamente explicado, os seus defensores (como fui e sem ponta de arrependimento) do estado de exceção que vivemos, nunca poderão ser acusados de incoerência. Até porque se sabe que outras pandemias surgirão e esta terá constituído uma enorme fonte de aprendizagem, pelo que importa mantermo-nos alerta, mas, nunca, em estado de paralisante pânico ou com uma mais do que reprovável displicência, para ganharmos fôlego e termos autoridade moral para os próximos combates que eventualmente vierem a surgir e que nos exigirão, não menos discernimento e bom senso.

Uma última chamada de atenção. Vossa Exª prometeu, e eu espero que cumpra, voltar ao CHS antes de passar a pasta ao seu sucessor. Tal como afirmou, e eu espero que não em vão, ir fazer tudo para conseguir anunciar alguma luz que permita começar a inverter o declínio inexorável desta importante instituição hospitalar, já que assumiu ter sido muito importante para si ter ouvido o que ouviu de mim e dos meus colegas presentes naquela reunião. É que não há muito tempo a perder e o período pré-eleitoral que irá começar em breve, irá ser fértil, como o são todos, em promessas, feitas nas sucessivas visitas que os vários candidatos à pugna eleitoral, irão começar a fazer em breve. Mas eu e os meus colegas o que queremos, é ter a possibilidade de, tal como Vª Exª, passar a Direção dos nossos serviços em melhores condições das que herdámos dos nossos antecessores, e, não, de vermos ruir um projeto profissional que tanto nos custou a erigir ao longo de décadas de dedicação, ao sairmos para a aposentação que se aproxima.

Tudo isto, pelos nossos doentes e pelos jovens especialistas em formação. Porque tal significará cumprir os desígnios fundacionais do SNS. É que nada mais me move, ou aos outros elementos do Grupo dos (ainda) demissionários Diretores de Serviço do CHS. Apenas isto que lhe acabo de expor, porque acredito na força das palavras e na exposição frontal de argumentos.

Atentamente,
Setúbal, 2021/12/07