Os pais não são apaixonados uns pelos outros como, “regra geral”, cada um deles acaba por ser apaixonado pelos filhos. Eu acho que é por esse esmorecimento que se dá na paixão que têm um pelo outro que os pais a tentam “normalizar”, dando como adquirido que a paixão tem um prazo de validade. Será, digamos assim, um furor passageiro que logo passa. Por mais que a paixão que os pais pais têm pelos filhos pareça não ter, aos olhos deles, prazo de validade. Logo, o problema não passará pelas características passageiras da paixão mas pela forma como, num amor adulto, ela parece “constipar-se” muito depressa. Como se fosse uma “fatalidade” que nos resigna a todos, com a qual nem vale a pena lutar.

É claro que podemos sempre perguntar se será possível viver, todos que os dias, sem o arrebatamento duma paixão. Na verdade, tanto podemos que acabamos por fazê-lo; quase todos. Mesmo que, por exemplo, por mais que se torne escorregadio comparar o incomparável, o amor parental e um amor adulto sejam realidades duma ordem de grandeza diferentes. Mas paixão é paixão. Isto é, o processo psicológico com que se constrói a paixão acaba por ser feito da mesma massa. O que nos leva, em determinadas circunstâncias, a viver encantamentos que não se cansam e, noutras, a considerar que a capacidade de alguém nos arrebatar e nos encantar tem — muitas vezes, depressa demais — um “prazo de validade”. Apaga-se. Acaba. E empurra um incêndio amoroso, na melhor das hipóteses, para uma amizade colorida. Que, depois de “esgotado”, não se reacende com a mesma pujança, limitando-se, à boleia de pequenas surpresas momentâneas (uma viagem, um jantar romântico e etc.), a pequenos fogachos em que se mudam coisas tão mínimas que, feitas as contas, a paixão permanece pálida como já estava.

É claro que haverá sempre quem diga que o furor duma paixão é incomportável com a vida agitada, de todos os dias. E, de certo modo, parece verdade. Mais agitados significa menos capazes de ter atenção, menos capazes de chegar ao espanto e à surpresa, menos capazes de admirar, menos capazes interpelar e de falar. Menos capazes para escutar o que se pensa e o que se sente. E menos alegres. Menos capazes de ter tudo o que a paixão nos traz. Mas, voltemos aos filhos — sem que isso queira dizer que, às vezes, eles não nos cansem ou não saibam como nos “esgotar a paciência” e nos levar “ao limite” — a forma como eles são, convictamente, muitíssimas mais vezes objecto duma paixão duradoura não tem muito a ver com a forma como falamos da paixão num amor adulto. No amor adulto, o prazo de validade duma paixão parece ser “curtinho”. No amor de pais, mesmo que tenha altos e baixos, é para toda a vida.

Portanto, aquilo que tende a falhar num amor adulto será a forma como alguém perde, aos nossos olhos, o brilho no olhar, deixa de nos trazer à surpresa e ao espanto e se torna menos capaz de fazer com a sua graça uma clareira à sua volta. A ponto de se tornar menos capaz de nos arrebatar e de encantar.

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É verdade que há quem fale da paixão como uma química. E é claro que a química dos sentimentos não é um “amendoim” numa relação amorosa. O equívoco que todos acabamos por alimentar passa por supormos que a química é uma espécie de tempestade perfeita que se dá por geração espontânea. Um “fomos feitos um para o outro” mais ou menos cósmico que nos apanha de surpresa. Como uma onda que ou se apanha ou nos enrola, quase sem querer. Mas muito pouco como um trabalho dedicado com que se tecem as condições que fazem com que haja paixão.

Há, também, quem, a pretexto da paixão, fale de “amor incondicional”. Como se ele fosse um eixo de luz que atravessa sombras, obscuridades ou nevoeiros. Como se todo o amor não fosse, mais do que parece, “à condição”. Ora, talvez ao amor incondicional chamemos, simplesmente, paixão; sem dar por isso. Porque paixão e amor incondicional nos levam a ignorar as coisas feias duma pessoa e a privilegiar, unicamente, os laços que nos ligam a ela. Aquilo que dela nos arranca reboliços na alma e “borboletas na barriga”. A ponto de repetirmos que “há razões que a razão desconhece”.

Mas paixão é racionalidade; mais do que parece. Daí que, se a paixão é um clarão de êxtase que nos resgata para a beleza, a pergunta — cheia de arestas — que surge será: porque é que é mais fácil assumirmos que a paixão parece ter um prazo de validade próximo da vida duma borboleta em vez de nos perguntarmos o que é faz com que quem já foi tão bonito para nós, a ponto de merecer a nossa paixão, se vá tornando feio, aos bocadinhos, a ponto de perder o brilho, e de não nos trazer nem à surpresa, nem ao espanto, nem à admiração. E de fazer com que não nos encante nem nos arrebate. É claro que haverá sempre quem diga que mais velhos significa mais feios. Ou que quanto mais conhecidos mais desinteressantes. Mas não é bem assim. A paixão não vem do desejo; a paixão leva-nos ao desejo. Logo, é muito mais a forma como nos desmazelamos perante aquilo que nos torna feios que faz com que a paixão morra depressa. Isso e a forma como as fealdades do outro se tornam numa guerra condenada ao fracasso. Como se não valesse a pena trabalhar para sermos mais bonitos. Talvez porque a falta de beleza do outro nos ajude a ficar sombrios, “normais” e enfadonhos. Levando-nos à resignação de encolhermos os ombros e considerar que todas as paixões morrem depressa. Mas não é assim: nasce, isso sim, num instante, a forma como nos achamos feios. E como somos levados a sentir que não há quem nos traga à beleza. Como se cada um fosse para o que nasce. E nunca para quem nos leve a nascer de todas as vezes em que vamos atrás da vida. Chegando, de sobressalto em sobressalto, à paixão. Mais uma vez. Sempre mais uma vez.