A temática dos trabalhadores das plataformas digitais continua na ordem do dia e cremos que assim ainda irá suceder durante algum tempo, pela sua importância, mas também pelas dificuldades que a mesma suscita.

Todos sabemos que durante a pandemia o recurso a este tipo de entregas aumentou substancialmente, o que tornou ainda mais evidente a necessidade de esta realidade ser regulada. Recentemente, mais concretamente no passado mês de abril, surgiu uma notícia que pareceu ser mais uma “luz ao fundo do túnel”: um tribunal de Paris aplicou uma multa à plataforma Deliveroo France, responsabilizou criminalmente três dos seus gestores e ainda determinou que fossem pagas indemnizações a alguns entregadores e aos sindicatos por aquilo que foi denominado “trabalho encoberto”, ou seja, por não se reconhecer o real estatuto dos estafetas de entregas daquela plataforma. Sendo certo que a empresa poderá ainda vir a recorrer dessa decisão.

Contudo, essa decisão só por si vem, mais uma vez, relembrar a importância e a atualidade do tema, que urge tratar e regular.

Um aspeto que nos parece relevante, no caso concreto, e que é, no nosso entendimento, revelador da premência do tema é o facto de que a decisão do tribunal obriga à afixação da mesma, nomeadamente em frente das instalações de Deliveroo durante um mês. Esta é uma forma de não deixar despercebida uma decisão tão importante para todos, em particular para os entregadores; não obstante ser desfavorável à empresa, esta terá de mostrar de forma pública e evidente a mudança que importa ter presente nas relações com os trabalhadores das plataformas digitais e que o tribunal reconheceu e impôs.

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Na verdade, essas empresas recorrem a entregadores como prestadores de serviços, tendo, por isso, um vínculo mais precário, por forma a obviar ao vínculo e às obrigações próprias dos assalariados, trazendo consigo a impossibilidade de essas pessoas terem acesso aos mesmos direitos que teriam caso a sua situação jurídico-laboral fosse devidamente reconhecida.

E por que é que isto é tão relevante para essas empresas? Porque conseguem reduzir consideravelmente os seus custos, embora também haja entregadores que prefiram este registo de maior liberdade de atuação, de flexibilidade, sem horário de trabalho, por exemplo. Apesar de, e como vamos percebendo, essa liberdade poder ser uma falsa liberdade, já que muitas vezes as empresas utilizam mecanismos que influenciam essa suposta liberdade/flexibilidade dos trabalhadores, nomeadamente por via da opinião dos seus utilizadores (e criação de algoritmos). Ou seja, por vezes essa liberdade/flexibilidade de trabalho por parte dos entregadores condiciona o volume de trabalho no futuro e, consequentemente, a sua retribuição pelos serviços prestados.

Além disso, esta realidade suscita também questões de concorrência desleal, porquanto estas empresas, reduzindo os seus custos, seja com salários, seja com contribuições para a segurança social e impostos, acabam por ter uma margem de lucro superior a tantas outras que cumprem a legislação.

Esta decisão do tribunal francês é considerada uma decisão histórica. Mas quais as suas reais consequências? No caso concreto, a empresa afirmou que pretende continuar a investir em França. Mas nalguns casos o que sucede é que as empresas acabam por cessar a sua atividade nesses países, dirigindo-se para mercados mais liberais.

Em bom rigor, estas empresas prestam serviços de entregas, cobrando inclusivamente custos adicionais por esses serviços em concreto, não se limitando a estabelecer ligações entre restaurantes e clientes.

A questão que se coloca mantém-se: que futuro em Portugal?

É evidente uma cada vez maior contestação das condições de trabalho por parte dos entregadores, mas também uma cada vez maior atenção por parte de quem poderá fazer alguma coisa relativamente a esta matéria.

Recentemente, em março de 2022, foi divulgado o Livro Verde sobre o futuro do trabalho 2021, que identifica algumas linhas de reflexão das políticas públicas para o futuro do trabalho em Portugal, nomeadamente relativas a esta matéria.

Importa salientar a necessidade de regular o trabalho em plataformas digitais e assegurar a existência de um enquadramento contributivo e fiscal adaptado, nomeadamente no sentido de assegurar direitos e proteção social adequada aos trabalhadores, bem como regulamentando a utilização de algoritmos, designadamente na distribuição de tarefas, organização do trabalho, avaliação de desemprenho de progressão.

É importante que se estabeleça uma presunção de laboralidade, mas acima de tudo que se salvaguardem direitos, independentemente de estarmos perante uma situação de contrato de trabalho ou, ao invés, perante um efetivo contrato de prestação de serviços.

A nosso ver, é preciso perceber que, mais do que números que permitem essas empresas crescer, a par disso existem pessoas e essas pessoas, que ali trabalham, têm direito a um trabalho digno. Não basta defender que todos temos direito ao trabalho. É preciso que todos tenhamos direito a uma retribuição justa em função do trabalho realizado, em condições socialmente dignificantes e em boas condições de higiene, segurança e saúde.

O desafio neste momento é perceber quanto tempo será preciso para que essas mudanças comecem a surgir. Ou será que, também em Portugal, vão ser os tribunais a ditar as regras?