Primeiro equívoco: a democracia liberal não olha pela as pessoas. Num pequeno filme que circulou nas redes sociais, Giorgia Meloni, a nova primeira-ministra italiana, fala da importância da família, de Deus e da nação. Nesse discurso, Meloni considera que as pessoas se tornam escravas da frieza que é o capitalismo selvagem se forem afastados do conceito de família, de Deus e de país. Para Meloni é a pertença a algo mais que cada um de nós é, em si e enquanto ser isolado, que nos defende da massificação consumista do mundo moderno.

Giorgia Meloni não é a fascista que dizem ser (contrariamente a Órban apoia as sanções à Rússia) e representa uma moderação relativamente ao extremismo de Salvini. De qualquer forma, o dito discurso é curioso por duas razões: primeiro, pelo sucesso mediático, como se tivesse sido de alguma forma original no que disse e não se limitasse a repetir uma velha ladainha das queixas que habitualmente se fazem quando se assiste a uma mudança. Em segundo, porque foram os extremismos (fascismo, nazismo e comunismo) que massificaram a pessoa, encararam o indivíduo como a peça de uma engrenagem ao serviço de uma causa maior. Não foi a democracia liberal nem a livre concorrência. Não foi a abertura dos mercados nem a globalização. Foram os que se assustaram com o desenvolvimento económico, o progresso científico, social, os que se insurgiram contras as alterações no estilo de vida, contra a possibilidade de cada pessoa poder decidir o que fazer com a sua vida.

O equívoco de Meloni reside na concepção que a vida em comunidade tem como base um conjunto de pessoas, sejam famílias, instituições, organizações, seja o Estado ou a pátria. Estas são importantes na vida comunitária, mas a sua base é a pessoa concreta, individual. É a soma das pessoas, as diversas associações que estas constituem, criam, que fazem a dita comunidade. Ou seja, as pessoas não estão sós nem desprotegidas quando encaradas enquanto indivíduos. Pelo contrário, é-lhes reconhecida essa realidade, essa humanidade, essa escolha de continuidade, de pertença. É esse reconhecimento que impede que se tornem escravas de instituições frias, desumanas e despiedosas como sucede com a estrutura Estado criada pelo comunismo e pelo fascismo. Foi por essa razão que o liberalismo, enquanto forma de governação, se adaptou desde o fim das guerras napoleónicas até aos dias de hoje, se preocupou por abranger o maior número de cidadãos, combateu monopólios em prol da livre concorrência, alargou o direito de voto, a protecção social e o próprio conceito de Estado e o papel do governo. O respeito pela pessoa, pela sua vocação e potencialidade, foi uma das ideias basilares do liberalismo desde o início do século XIX até aos dias de hoje.

Além de mulher, mãe e italiana, Meloni define-se também como cristã. Acontece que foi o cristianismo que veio dar ênfase à importância singular da pessoa humana. Foi Cristo quem demonstrou, tanto através dos seus ensinamentos como pela forma como viveu e morreu, que a salvação não depende de terceiros, não depende de instituições, mas da escolha individual de cada um, da sua relação individual com Deus. Não é popular dizê-lo, mas a mensagem de Cristo foi revolucionária devido ao seu cariz individual, pessoal. Porque foi uma mensagem de libertação da pessoa.

Segundo equívoco: Margaret Thatcher salvou o Reino Unido porque baixou os impostos. A libra caiu a pique depois do ministro das finanças britânico, Kwasi Kwarteng, anunciar um corte nos impostos acompanhado por um aumento da despesa pública. Naquele que se tornou o segundo equívoco da semana, Liz Truss foi de imediato comparada a Margaret Thatcher, a dama-de ferro responsável pela recuperação económica do Reino Unido na década de 80. Em 1979, o Reino Unido era considerado o homem doente da Europa com uma inflação acima dos 14%, taxas de crescimento económico fracas quando não negativas, uma dívida pública que correspondia a 40% do PIB e um desemprego que, em crescendo, atingia já os 6%. No entanto, e contrariamente ao equívoco que se tentou passar, não foi com a simples redução dos impostos que Thatcher pôs o Reino Unido de volta nos carris. Menos ainda com um aumento da despesa pública. O que Thatcher fez foi reduzir a massa monetária em circulação. Esse objectivo passava por um aumento das taxas de juros do Banco de Inglaterra, mas também por uma redução da despesa pública (que em demasia conduz a um excesso de dinheiro a circular na economia, logo a mais inflação), até que se atingiram excedentes orçamentais que sustentaram o sucesso da economia através de uma redução da dívida pública. Com essa política extremamente complexa (e difícil de passar num discurso político), a que se juntou a liberalização económica e a redução do poder dos sindicatos que paralizavam várias empresas e a vida de muitos trabalhadores, Thatcher conseguiu uma década de crescimento, controlou a inflação e reduziu o desemprego. No final do seu último mandato a dívida pública representava menos de 30% do PIB.

O plano de Liz Truss visa baixar impostos para incentivar o consumo (Thatcher subiu o IVA para o desincentivar) e nada tem a ver com o aplicado na década de 80. Os tempos também não são os mesmos. Nem tem qualquer razão de ser equiparar a queda da libra desta semana com a de 1985. Nesse ano, o valor da libra caiu estrondosamente, mas tal não se deveu à política do governo Conservador, mas ao Acordo do Plaza, assinado no famoso hotel de Nova Iorque com o objectivo de desvalorizar o dólar, decisão que veio abalar o valor da moeda britânica.

Terceiro equívoco: Marcelo julga que nos deve proteger da verdade. Na Califórnia, o Presidente da República alertou para o excesso de alarmismo de Christine Lagarde por esta ter avisado que a actividade económica na zona euro irá “abrandar substancialmente nos próximos trimestres”. Em jeito de comentário, Marcelo disse temer os efeitos negativos de um “discurso muito dramático”. É sabido que a estratégia presidencial de Marcelo Rebelo de Sousa assentou toda ela num optimismo e num tom de festa permanente. O importante sempre foi afastar o mau-olhado. Primeiro, a crispação do período da troika, depois o proveniente de qualquer acontecimento grave. Em Pedrógão, fez-se o máximo que se podia, na pandemia o que foi possível. O objectivo primordial foi desvalorizar; desviar as atenções. Entreter.

Marcelo julga que vivemos num país governado por um pequeno grupo no qual ele se inclui e que nos deve proteger das influências negativas que vêm de fora. Talvez tenha razão até porque a ideia não é nova. O seu equívoco é achar ser essa a sua função. Salazar não conseguiu evitar o fim do império nem o seu regime impediu as consequências da crise do petróleo de 1973. Não é por nos esconder a verdade como se fôssemos crianças, por nos divertir com piadas, divagações engraçadas e comentários despropositados sobre a selecção nacional de futebol que Marcelo nos protege. O seu papel enquanto Presidente da República não é esse. A sua função é precisamente a contrária: a de alertar para o que vai mal, a de incentivar o espírito crítico dos cidadãos, fazer possível para que a nossa comunidade seja uma de cidadãos, indivíduos, livres e responsáveis.

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