A discussão sobre a lei que regula o uso e porte de arma nos Estados Unidos da América é antiga e reaviva-se sempre que surge um atentado que coloca em choque a sociedade da Terra do Tio Sam. Um choque cujo impacto depende não apenas do número de vítimas, mas também das respetivas idades. Daí a comoção com que foi recebida, em muitos lares estadunidenses, a notícia da morte de 21 pessoas, incluindo 19 crianças, no recente massacre perpetrado numa escola primária na cidade de Uvalde, no Texas.

Reagindo ainda a quente, o atual Presidente, Joe Biden, foi firme na condenação do massacre e pediu ao país para enfrentar, de uma vez por todas, o poderoso lobby das armas, pois o receio de desafiar os interesses instalados – uma clara alusão à Associação Nacional de Armas (NRA) –  fazia com que os Estados Unidos continuassem a ser o único país do mundo em que este tipo de massacres ocorre com frequência.

Como era expectável, o lobby das armas foi célere na resposta à intenção manifestada por Biden. Assim, depois de ter recusado qualquer responsabilidade no massacre, a NRA confirmou que mantinha a realização do seu encontro anual a realizar em Houston, igualmente no estado do Texas.

Talvez convenha dizer que a Associação Nacional de Armas sabia que poderia contar com o apoio do anterior Presidente dos EUA, Donald Trump, movido pelo desejo de regressar à Casa Branca. Daí que Trump se tivesse prontificado a garantir a presença no evento e prometesse aproveitar a reunião para fazer um importante discurso ao povo norte-americano. Ao povo e não à Nação, como manda a lógica populista.

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No entanto, a complexidade da questão aconselha a que a análise vá além da posição de Biden e de Trump sobre o assunto, embora reconhecendo que o atual e o anterior residente na Casa Branca representam as duas tendências em confronto. Na realidade, importa referir que, apesar do passado colonial dos EUA, o seu modelo de segurança não é tributário da tradição europeia.

Na Europa, os cidadãos aceitam transferir para o Estado a garantia da respetiva segurança. Acreditam que as forças ditas de segurança serão capazes de fazer jus à designação. Nos EUA, os cidadãos consideram que o Estado não é suficiente para assegurar a defesa da vida e propriedade dos seus cidadãos. Daí a necessidade de possuir armas para garantir a defesa da vida do próprio e da sua família, bem como a segurança dos respetivos bens.

Uma diferença que pode ser sistematizada na frase que classifica os europeus como filhos de Vénus, a deusa do amor, e os estadunidenses como descendentes de Marte, o deus da guerra.

A situação decorrente da forma norte-americana de ver o relacionamento entre o Estado e os cidadãos no que concerne à questão da segurança já aponta para a dificuldade em encontrar uma solução que seja objeto de consenso. Porém, a situação tende a piorar quando se toma em linha de conta os escritos de Charles W. Mills sobre os EUA.

Na verdade, Mills identifica três elites que controlam toda a vida do país. Uma forma de reconhecer que a elite política não manda sozinha. A sua ação depende de duas outras elites: a económica e a militar. São estas três elites que ditam a lei e nada pode ser decidido ao arrepio de uma delas.

Face ao exposto, Joe Biden pode manifestar, de forma emocionada, a sua revolta pelo massacre. Porém, sabe que o processo necessário para conduzir à aprovação de uma lei nacional no sentido de limitar o uso e porte de arma será moroso e difícil. O lobby das armas, na suas vertentes económica e militar, escuda-se na Segunda Emenda. Algo que Trump também sabe na perfeição.

Confrontados com as imagens do massacre, os cidadãos norte-americanos continuarão divididos sobre a melhor estratégia para pôr fim ao flagelo. O problema é que nos EUA, a fórmula one man one vote há muito que deu lugar ao modelo one dollar one vote. Entretanto, os massacres vão continuando a tingir o chão com o sangue dos inocentes.