No recente artigo “A revolta dos deserdados da globalização” Helena Garrido defende que a razão mais provável para a vitória do que considera “populismos” de Trump e Brexit é a desigualdade no rendimento, o facto de vivermos numa suposta “sociedade dual” e na consequente revolta dos “vencidos da globalização”.

Não estou certo que seja intenção da autora, mas o seu texto alimenta a narrativa muito popular nos media de que o comércio internacional e a crescente integração global das economias geram uma sociedade mais injusta e provocam resultados eleitorais perigosos para a humanidade.

Com excepção dos revolucionários e propagandistas do costume, muitos dos que partilham desta análise reconhecem, apesar de tudo, que o livre-comércio e a globalização contribuíram para a melhoria, em média, do nosso padrão de vida. Mas acrescentam: há todavia “vencedores” e “vencidos” e os primeiros têm obrigação de compensar os segundos. No fundo, fazem subtilmente a defesa da redistribuição e do estado social.

Na verdade, qualquer acção humana tem vencedores e vencidos, mas não vejo fazer-se um apelo a compensação semelhante no âmbito de qualquer outra mudança política ou opção económica, como seria intelectualmente honesto.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Vamos por partes. Desmitifiquemos alguns dos malefícios que são normalmente atribuídos à globalização, em particular relacionados com a disparidade de rendimento, o emprego e os resultados eleitorais.

Parece ser consensual que a nível global todas as classes de rendimento tiveram ganhos reais nas últimas décadas, apesar de umas terem ganho mais do que outras. Por exemplo, a classe média dos países ricos (percentil 75-90 de rendimento) foi das que menos ganhou. No entanto, só se considerássemos o ritmo de crescimento mais importante que a sua variação absoluta é que poderíamos chamar a esta classe como “vencidos da globalização”. Entre 1988 e 2008 o rendimento per capita ajustado pelo poder de compra cresceu 340% na China e “apenas” 40% nos EUA. Não seria de esperar coisa diferente em países menos desenvolvidos que, por partirem de uma base de rendimento muito mais baixa, têm ritmos de crescimento tão acelerados. Mas será justo dizer que os americanos estão a “perder”? Curiosamente, dantes, o discurso popular era precisamente o inverso: os países ricos cresciam à custa dos países pobres. Adiante…

O famoso gráfico em forma de elefante que o economista do Banco Mundial – Branko Milanovic – publicou em 2012 parecia em grande medida suportar a narrativa vencedores vs. vencidos da globalização. Foi entretanto revisto pela Resolution Foundation, um think tank britânico que tem por missão defender os interesses dos cidadãos das classes de rendimento menos privilegiadas. Revela-nos o estudo desta fundação que, afinal, o rendimento da classe entre o percentil 70-85 registou um aumento e não uma estagnação. Pasme-se: o comércio internacional fez também da classe média uma vencedora.

Por outro lado, se na classe dos 1% com rendimentos mais elevados se verifica um ritmo de crescimento proporcionalmente bastante mais acelerado do que o da classe média, uma actualização de Milanivoc ao seu próprio estudo indica que entre 2008 e 2011 as classes que tinham registado os ritmos de crescimento mais modestos nos 20 anos anteriores, tiveram agora um crescimento mais acentuado do seu rendimento. Também entre 2008 e 2011 se verifica uma quebra significativa no ritmo crescimento do rendimento da classe do topo 1%, reduzindo-se assim a nível global, também por esta via, as desigualdades.

Quanto ao emprego, convém notar que mais do que o comércio internacional, têm sido as inovações tecnológicas, a automação de processos e os ganhos de eficiência a colocarem maior pressão na redução do número de trabalhadores da indústria americana e britânica, situação que se verifica aliás desde finais dos anos 70. Não obstante, o volume e valor da produção industrial têm tido um crescimento sustentado ao longo dos anos, atingindo hoje níveis nunca antes verificados.

Análises mais extensas que as do Pew Research Center, coordenadas por Jonathan Rothwell da Gallup, a partir de 87 mil entrevistas, sugerem que os apoiantes de Trump não foram especialmente afectados nem pelo comércio internacional nem pela imigração, por comparação com os seus opositores. Sugere também que os americanos que apoiam Trump não têm rendimentos inferiores aos restantes, nem têm maior probabilidade de ficar sem emprego.

Verifica-se portanto que apesar dos apoiantes de Trump viverem em zonas geográficas consideradas popularmente como tendo sido afectadas pelo comércio internacional, estas pessoas beneficiam, de facto, de condições económicas acima da média. Ao contrário do que seria previsível, o apoio a Trump é menor em zonas mais expostas ao comércio internacional e imigração.

Segundo este estudo da Gallup, os americanos que vivem em zonas que perderam empregos industriais não são relativamente mais favoráveis a Trump. Muitos deles têm ocupação profissional no sector da construção, reparação e transportes, protegidos da concorrência internacional.

Torna-se então muito plausível que os apoiantes de Trump com uma visão negativa da globalização a têm, não por devido a uma má experiência pessoal com as importações ou a imigração, mas pelo facto de terem pouco contacto com estes movimentos.

O sucesso da mensagem proteccionista de Trump é mais eficaz junto de pessoas sem experiência de concorrência e trocas comerciais com o estrangeiro e assenta na exploração de sentimentos de desconfiança sobre coisas que vêm de fora, sobre o desconhecido.

Também os resultados do referendo do Brexit são surpreendentes para muitos, dado que não há evidências de que os votantes “Yes” tenham sido pessoalmente afectados pela globalização. Ao invés, grande parte dos apoiantes da saída do Reino Unido da União Europeia encontra-se entre pensionistas e beneficiários de apoios sociais.

Sem dúvida que a globalização, a crescente integração internacional das cadeias de produção, a exploração das vantagens comparativas e a divisão global do trabalho coloca ao nível de algumas indústrias e ocupações pressões muito fortes ou mesmo implacáveis. Naturalmente, vários grupos e indivíduos são afectados directamente e individualmente por estes movimentos. Mas o facto é também que onde os mercados são abertos e competitivos, incluindo o mercado laboral, as economias locais têm sido capazes de absorver os choques e têm prosperado.

Ao contrário da narrativa dominante, a relação causal entre globalização e apoio a políticas proteccionistas e nacionalistas não é a que nos querem fazer crer. Os apoiantes destas políticas são oriundos de locais onde se vive um clima de adversidade económica e falta de perspectivas de um futuro melhor.

Mas são as ideias progressistas de moldar o capitalismo com patines fofas de socialismo através da intervenção dos governos e do “estado social” que criam desajustamentos e ineficiências tais que impedem ou atrasam a melhoria das condições de vida dos cidadãos.

A globalização não é a razão da vitória de Trump nem do Brexit.

Licenciado em Relações Internacionais. MBA. Especialista em Internacionalização. telmo.azevedo.fernandes@gmail.com