Esperava-se a maior audiência de sempre para um debate presidencial. Durante dias, a imprensa antecipou e especulou, comparando a experiência política de Clinton e o sentido do espectáculo de Trump. Como previsto, Trump ameaçou a China e Clinton ameaçou os ricos, Clinton acusou Trump de ser amigo de Putin e Trump acusou Clinton de esconder e-mails. Muitos comentadores lamentam que não seja possível perderem os dois. Mas talvez seja.

O ponto mais relevante destas eleições é este: ambas as candidaturas, de maneira diferente, traduzem o divórcio entre as elites partidárias e os seus eleitorados. Trump foi imposto pelos eleitores à elite do partido, enquanto Clinton foi imposta pela elite do partido aos eleitores. Na liderança republicana, ninguém esperava Trump, que aliás só deixou de ser um Democrata em 2009. A escolha era Jeb Bush, irmão do presidente George W. Bush. Mas debate após debate, primária a seguir a primária, Trump surpreendeu, persistiu e acabou por ganhar. Significativamente, os Bush recusaram-se até agora a juntar-se à sua campanha. Do outro lado, a elite democrata estava com Clinton. Foi necessário um neófito, Bernie Sanders, que aderiu ao partido apenas em 2015, para haver alternativa. Os eleitores mostraram-lhe logo um entusiasmo que Clinton nunca lhes mereceu, forçando a máquina do partido a todos os truques para favorecer a candidata. Quantos democratas não votarão, ou votarão sem qualquer ânimo?

Em grande medida, este divórcio entre líderes partidários e eleitores foi, como noutros países ocidentais, provocado pela contestação ao internacionalismo e à globalização. A elite política americana adoptou as causas da globalização e do internacionalismo desde a II Guerra Mundial, como uma espécie de obrigação inerente à importância da economia e do poder militar americano. Os EUA tinham obrigação de serem a esquadra de polícia e o albergue do mundo. Precisamente, Trump e Sanders destacaram-se por não parecerem dispostos a carregar o “fardo dos americanos” (com Sanders mais focado no comércio do que na imigração). Foi assim que Trump prevaleceu entre os republicanos, apesar de negar tudo aquilo que parecia ser o dogma do partido, desde o Estado mínimo até à missão universal dos EUA e a intransigência perante o aborto.

Quais são as suas hipóteses? Trump e Clinton são os candidatos menos estimados de sempre. A esperança de cada um deles é que o rival inspire um pouco mais de repulsa. Desenvolveram, por isso, uma original sociedade de demonização mútua. Para Trump, Clinton é corrupta e mentirosa; para Clinton, Trump é racista e imita Putin. Ambos sabem que, sem o outro, já estariam fora de jogo. Perante um candidato republicano menos afectado por demagogia, Clinton já teria sido vítima da desconfiança que suscita; perante um candidato democrata sem tanta bagagem de escândalos, talvez Trump tivesse parecido demasiado arriscado para subir tão alto.

A discussão neste momento centra-se no que cada um deve fazer para derrotar o outro. De facto, Trump pode derrotar Clinton, e Clinton também pode derrotar Trump. O que nenhum porventura pode é vencer as eleições com um mandato forte para liderar o país. Numa sociedade tão polarizada, não será fácil propiciar boas vontades; perante tantas incertezas, como cultivar confiança? Até Obama, o messias de 2008, falhou. Trump talvez consiga dar voz aos cidadãos fartos de um poder “politicamente correcto”, mas como vai lidar com os compromissos externos dos EUA? Entregará a Europa a Putin, e o Oriente à China? A União Europeia aguenta um Brexit, mas o mundo não suportará um Americaexit. Quanto a Clinton, talvez mantenha o sentido de responsabilidade diplomática das velhas elites americanas, mas como vai compensar, dentro do país, a repugnância dos cidadãos pela sua falta de transparência? Sem maiorias no congresso, não é impossível que acabe como uma espécie de Dilma Roussef norte-americana. Estas são eleições em que derrotar o adversário não vai chegar para ganhar. Sim, é possível que ambos os candidatos venham a perder, cada à sua maneira.

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