Um bom profissional com feitio irascível. Um líder, um treinador de excelência capaz de gestos e atitudes execráveis. Onde é que já vimos este filme? Alguns estarão a pensar em alguém que conhecem, mas na verdade não estou a escrever sobre ninguém conhecido. Escrevo sobre um personagem que não existe na vida real (embora se pareça demasiado com muitos) e sobre uma ficção que fica aquém da realidade.

Escrevo sobre “Campeões”, o filme que ganhou vários prémios, foi candidato aos Óscares, tornou-se um campeão de bilheteira e marcou um antes e um depois em Espanha. Estreou em Portugal há pouco mais de uma semana e também já está a fazer história no nosso país.

Hilariante, terno, profundo e inesperado, “Campeões” leva-nos às lágrimas. De riso, acima de tudo, mas também quando nos comove pela autenticidade e nos interpela pelo respeito elevado por todos aqueles que são diferentes e nos habituamos a catalogar como deficientes.

A história é simples: o treinador adjunto de uma das melhores equipas de basquete da Liga Espanhola tem mais um ataque de fúria no fim de um jogo que não correu como desejava e, na impossibilidade de fazer valer a sua estratégia junto do treinador principal, abandona intempestivamente o campo e decide diluir a zanga em copos, sozinho, num bar. Quando volta à estrada é apanhado a conduzir com excesso de álcool e, abreviando a história, acaba preso numa esquadra de polícia.

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Já no tribunal e perante a possibilidade de ficar preso ou cumprir serviço cívico, a juíza decide pela opção do serviço à comunidade. Começa ali o pesadelo de Marco Montes, o treinador, ainda em choque e muito assustado com a aparente desproporção da pena que lhe foi imposta uma vez que teria que treinar uma equipa exclusivamente formada por jogadores com deficiências intelectuais.

Devo dizer que Javier Fesser, o realizador de “Campeões”, escolheu um ator fabuloso para representar o dito treinador, pois Javier Gutiérrez veste magistralmente o fato do bom homem que é permanentemente traído pelo seu mau feitio, pelos maus timings e pelas más escolhas. Sem artificialismos e assumindo uma identidade que parece sua, de tal forma o acting lhe sai natural, o treinador Marco Montes apanha-nos desde o primeiro instante e, como diz o próprio realizador, é graças a ele que “Campões” se torna um sucesso. Sim, mas não só.

Fesser queria filmar a realidade (parte da realidade) das pessoas deficientes e fez um demorado casting para os 10 atores principais. Teve mais de 600 candidatos e confessa que chegou ao elenco final com alguma dificuldade, dada a extraordinária multiplicação de talentos com que se deparou ao longo do processo. E é aqui que começa o sucesso do filme: na forma como o realizador constrói e dirige a sua equipa.

Nenhum dos jogadores era ator e, no filme, todos agem como se fossem. Como se toda a vida tivessem estado em palco, a representar, a parar para recomeçar, a repetir as deixas e a encadear as falas. Mais, todos e cada um dos que fazem de jogadores nunca tinham tocado numa bola de basquete e, muito menos, havia a garantia de que teriam perícia para driblar, fintar e encestar. Também o processo de os treinar permitiu fazer equipa e ficar a conhecer melhor cada um. Javier Fesser, o realizador, tem dado sucessivas entrevistas e em todas elas sublinha entusiasticamente este tempo fabuloso que passaram juntos, declarando que foi por serem todos tão divertidos e tão criativos que o filme também se tornou tão cómico.

A crítica espanhola foi unânime, na altura em que o filme estreou, e também depois, quando foi selecionado para representar Espanha nos Óscares: “a ternura e a admiração com que Fesser retrata os seus personagens, a quem retira todo e qualquer rótulo, associada à sua estética cinematográfica fazem com que o realizador se eleve à categoria dos melhores de Hollywood”. O filme não ganhou nenhum Oscar, mas todos sabemos quão importante é ser candidato, naquele star system tão competitivo.

“Campeões” é um filme imperdível pelo humor explosivo e pelo amor redentor com que cada um revela os seus talentos. Todos deixam uma marca profundamente humana. Enquanto o filme dura, não temos pena de ninguém, não achamos ninguém estranho, não temos rótulos para colar a nenhum dos personagens e rimos quando nos fazem rir. Com eles, mas nunca deles! As gargalhadas são constantes e o espírito que se vive na sala é de comunhão total entre quem assiste e quem representa. Como se estivéssemos no teatro e, no fim, pudéssemos ir ao backstage conhecê-los, dar-lhes abraços e felicitações.

É o que apetece fazer, aliás, mesmo não sendo uma peça de teatro.

A candura dos personagens, bem como o seu inesperado profissionalismo e a sua arte para combinar a realidade com a ficção cativam-nos do princípio ao fim. A honestidade, a verdade, a inocência e “esse olhar infantil, tão puro e tão limpo” com que revelam a sua natureza, a sua alma e as suas capacidades, transformam o nosso olhar. Depuram-nos os sentidos. Desfazem todo e qualquer preconceito que permaneça em nós e libertam-nos de todos os condicionalismos que nos prendem sempre que se fala de deficientes.

Sensível, sem cair em sentimentalismos, o filme “Campeões” não concede ao coitadismo nem às ideias pré-concebidas e, muito menos, aos julgamentos perversos de quem ainda divide o mundo entre ‘normais’ e ‘anormais’ (até custa escrever a palavra, de tão pré-histórica e pedregosa que é!). Fesser diz que teve sempre a sensação de estar a dirigir atores que eram como crianças, não pela imaturidade ou excesso de infantilidade, note-se, mas pela curiosidade e abertura, pela capacidade de descoberta e superação.

Uma das jovens atrizes, com Trissomia 21, porventura a mais cómica, repete uma frase a todos os que conhece pela primeira vez e insistem em trata-la por tu:

– Tu, a mim, não me tratas por tu!

No filme, a repetição tem graça e reforça a atitude de quem se quer dar ao respeito e faz questão de ser valorizada na sua identidade. Não resisto e faço minhas as palavras da adorável e aguerrida Collantes. E acrescento:

– Tu, a mim, só me tratas por tu no dia em que me tratares como igual!