E, depois, há sempre um desgosto que representa uma pequena pedra, no caminho. E mais outro. E mais outro. E das pequenas pedras nasce uma cerca. E, de cerca em cerca, ergue-se um muro. E, depois, há um dia qualquer em que um furor em nós nos faz esgadanhar muro-acima, para espreitar aquilo que se esconde do outro lado. E, entre o espanto e a surpresa, o familiar torna-se estranho. E há mais uma pequena pedra que se descobre – e mais outra, quiçá – e, de desgosto em desgosto, um muro já é uma montanha. A seguir, uma cordilheira. E, mal se perceba, acaba por ganhar escarpas, gargantas – fundas! – e desfiladeiros. Que nos separam. Tudo começou com uma pequena pedra. Daí que o desgosto seja sempre um pedregulho no caminho. Uma espécie de desamor que toma conta de nós. Uma bruma. Um nevoeiro que – logo, logo – se torna espesso. Um jeito de ser desfeliz. E que faz com que, a todo o momento, seja tarde demais. Depois, uma pessoa esmorece. Funciona; como se diz. Empanturra-se de trabalho, de redes sociais, de séries e de pequenas intrigas. De historietas. Faz por não pensar. Entrincheira-se em “vai-se andando”. Resigna-se. Entretanto, sobram os ”não vale a pena”. “A vida é assim”. E os “logo se vê”. E, claro, os “já não espero nada”. Engonha. E fica preguiçosa. Torna-se cínica, diante da fé no amor que outros acarinham. Alimenta uma certa ideia-canalha que a vida parece ter. Perde-se da esperança. Desencontra-se da garra. Capitula diante do desafio de desejar. Refugia-se n’“um dia de cada vez”. E cansa-se. Da vida. Para não se dar conta do cansaço das pedras no caminho. Espera que as coisas se resolvam por si. Desiste sem desistir. E pára. Sem deixar nunca de estar em movimento. Frenética. Tudo começa por um desgosto. Que nos separa de quem não nos devia separar.

Há uma certa toxicidade numa relação amorosa que se faz com os desgostos que se guardam. Não são crises. Nem a rendição duma paixão a um prazo que a apaga. Ou ao “tanto faz”. São colecções de pequenos desgostos. Na verdade, são pequenas pedras. Depois, cercas e muros. E, finalmente, escarpas, gargantas e desfiladeiros. A toxicidade duma relação não é nem culpa de um. Nem, sequer, culpa do outro. Faz-se de pequenos silêncios que se acumulam, diante dos desgostos. A dois. Um desgosto é uma dor que se desencontrou da sua voz e se remeteu ao sigilo, estragando o que nos liga. Um desgosto é um amor sem terra. Um sentimento de pertença que não conhece a sua pátria. Uma aragem de desamparo que nos torna refugiados, diante daquilo que sentimos. Porque a pessoa que está ao pé de nós nos dá a entender que a nossa sensibilidade fica para além da sua capacidade de entendimento. Como se fosse um muro. E a força de se esgadanhar, muro-acima, fraqueja, esmorece e vai colapsando, um dia depois do outro, aos bocadinhos.

Porque é que colecionamos pequenos desgostos? Porque somos sensíveis. Inacreditavelmente sensíveis! E lemos os outros de forma fulgurante. E em tempo real. Antes, mesmo, de percebermos que os estamos a ler. E ficamos fechados nas nossas dores. Que não são nem berrantes nem gritantes, claro. São, antes, pequenas pedras. Que doem, no entanto. Tudo começa por um desgosto. Nas mais das vezes, as pequenas pedras também são postas por nós. Depois, a desilusão é uma bruma que se fecha. E a decepção um golpe de frio que enregela. E uma relação amorosa torna-se uma companhia. Só isso! E estamos numa terra de ninguém. Não estamos nem juntos nem separados. Aquilo que sentimos dá-se em pequenos-nada. Tudo o mais que nós vivemos, vai acontecendo protegido por cercas e por muros.

Não, numa relação amorosa, não há um vilão. A vilania chega com o desgosto. E – logo, logo – os desgostos coleccionam-se. Primeiro, um. Depois, outro. E a voz cala-se. Não reclama nem protesta. E um muro separa quem, antes, estava perto. São precisas duas pessoas para que se crie uma pequena pedra. É preciso um desgosto, que se cala, para que ele nos separe e adormeça. Tudo começa por um desgosto.

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