Como seria de esperar, uma semana depois continuamos na mesma no caso das transferências para offshores entre 2011 e 2014. É verdade: descobrimos que não havia apenas um problema de publicação, mas de inspecção, que poderá não ter a ver com o primeiro. Mas ainda ninguém sabe se o Estado cobrou ou não o que devia. Era isso que mais importava saber, porque é o que tem permitido mais insinuações e acusações, mas acontece que é isso precisamente que não sabemos. Vamos saber? Provavelmente, já não será necessário. Todos os objectivos do caso foram entretanto atingidos: o tema da CGD saiu das primeiras páginas, as oposições passaram à defensiva, e a maioria governamental, dividida há uma semana, refez a sua unidade num banho termal de demagogia. O pano pode cair.

Nunca saberemos o que se passou com as transferências, tal como nunca saberemos o que se passou entre o ministro das finanças e António Domingues, nem o que aconteceu na Caixa Geral de Depósitos, o banco que o Estado não podia privatizar, porque era fundamental para compensar as aventuras e os riscos dos banqueiros privados, e que afinal acabou tão falido como os outros e a precisar de tanto ou mais dinheiro. Azar, má gestão, corrupção?

Não sabemos, tal como também não sabemos, ao certo, como atingimos o défice de 2,1%, a que Teodora Cardoso, presidente do Conselho de Finanças Públicas, chamou “milagre”, para escândalo do presidente da república. Como foi? Encontrámos mesmo o Salazar da democracia, o ministro das Finanças que provou que afinal a via para o equilíbrio orçamental é gastar mais com os funcionários? Ou houve apenas uma série de expedientes de última hora — perdões fiscais, cortes de investimentos — forçados no Verão passado pelas autoridades europeias, como condição para o país conservar o financiamento do BCE?

Não sabemos, tal como também não sabemos, ao certo, como chegámos ao ponto onde estamos. Em 2011, o Estado português deixou de se conseguir financiar nos mercados de capitais e teve de apelar à caridade internacional para pagar salários e pensões. No ano anterior, a despesa do Estado chegara aos 51,8% do PIB, o défice orçamental a 11,2% e a dívida pública, que duplicou em dez anos, a 111,4%. A economia portuguesa, entretanto, deixara de acompanhar o crescimento europeu e mundial desde 2001, e iniciara o mais longo processo de divergência em relação à Europa desde os anos 1930. Que se passou? Políticas erradas, má governação, estruturas desajustadas? Ou tudo resultou simplesmente da votação do PEC 4 em Março de 2011, como não se cansa de insistir o arguido da Operação Marquês?

Sim, é verdade que há muitos livros, artigos e relatórios. Cada um de nós até pode pensar que sabe tudo, ou quase. Mas o regime, no seu conjunto, não sabe, porque ao mesmo tempo que o Estado faliu, faliram os consensos e os compromissos, e tudo se reduziu a tema de discórdia e de confronto, mesmo os factos a que, em tempos de optimismo, chamávamos “objectivos”. Num cenário destes, qualquer assunto, por mais grave, serve apenas de mote para intriga e especulação.

Nunca, nesse sentido, saberemos o que se passou. Mas sabemos o que se passa: é o BCE, com a sua política de juros baixos e compras de dívida pública, que vai permitindo esta feira de “erros de percepção”, lapsos informáticos, demagogias vaidosas e operações clientelares. Mas com a inflação na zona euro nos 2%, a pressão sobre as “políticas de estímulo” tenderá a agravar-se. O que quer dizer que um dia, quando o véu de fantasia monetária do BCE deixar de cobrir a nudez forte da verdade portuguesa, descobriremos talvez, não o que se passou com as transferências ou com a CGD, mas o que se vai passar com todos nós, para além de todas as mistificações facciosas. Tudo em Portugal depende do BCE, até a verdade.

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