Facto: não há outra carreira tão longa, tão complexa e tão difícil como a Carreira Médica.
Demonstração
Ainda antes da universidade, os candidatos a médicos são, no seu conjunto, aqueles que têm que lutar por uma nota mais alta. Se bem que recentemente alguns outros cursos figurem no top 10, nenhum outro curso tem uma média tão alta mesmo na faculdade que apresenta média mais baixa. Em 2023 houve 1505 vagas de Medicina em faculdades públicas, mais do que qualquer outro curso com pelo menos uma faculdade no top 10. Um candidato a médico tem, globalmente, uma dificuldade em entrar para o curso da sua preferência como em nenhum outro.
Também é o curso mais longo: o Mestrado Integrado de Medicina, a par do de Arquitectura, são os únicos com 6 anos de duração.
Quem decide o número de vagas para o Ensino Superior é o Governo, através do Ministério do Ensino Superior.
A Medicina aprende-se com os doentes. Há quatro faculdades que têm mais de 200 vagas por ano: FMUP, FMUC, FMUL e FCMUNL. Isto traduz-se em turmas enormes. Não é preciso fazer um esforço muito grande para compreender que o tamanho das turmas tem impacto na qualidade do ensino. Os hospitais daquelas faculdades têm professores (e estrutura) em número suficiente para ensinar a tantos alunos? Os médicos que também são professores dedicam tempo suficiente ao Ensino Médico? É preciso que se compreenda que as faculdades têm limites de capacidade, sob pena de se degradar a qualidade do ensino.
É preciso formar mais médicos? Não. Portugal é o terceiro país da OCDE com maior número de médicos per capita. Às 1505 vagas de Medicina do concurso de 2023 somam-se as vagas para licenciados. Nunca houve tantas vagas como nos últimos anos. O que talvez fosse interessante é que, mantendo o número de vagas, pudesse haver mais faculdades, para que as turmas não fossem tão grandes. Há pelo menos duas universidades candidatas a ter Mestrado de Medicina e o processo encontra-se em avaliação: a Universidade de Aveiro e a Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
No fim do sexto ano (durante o mês de Novembro), os jovens médicos fazem um exame nacional, a PNA (Prova Nacional de Acesso), que avalia os conhecimentos de todo o curso e cujo resultado serve para ordená-los para escolher a especialidade que vão tirar.
A primeira etapa da vida profissional dos médicos é o Ano Comum, que dura um ano. No Ano Comum, os médicos trabalham 4 meses num serviço de Medicina Interna, 3 meses num de Cirurgia Geral, 2 meses num de Pediatria e 3 meses nos Cuidados de Saúde Primários. Trata-se de um período em que já trabalham com os doentes, de forma tutelada, fazendo urgências (dias e noites), consultas, executando procedimentos clínicos, ganhando progressiva autonomia e responsabilização.
No fim do Ano Comum, e dependendo da nota que tiveram na PNA, os médicos podem ingressar no Internato de Formação Específica (antigamente chamado Internato Complementar). Os médicos que não entram no Internato de Formação Específica ficam a trabalhar como médicos não especialistas (“indiferenciados”), em serviços de urgência, ou dedicam-se a outras actividades para as quais os conhecimentos do curso de Medicina sejam úteis: indústria farmacêutica, gestão, ensaios clínicos, ensino e investigação. Uma parte significativa, cada vez maior, emigra. Nestes casos, o dinheiro gasto por todos nós a formar médicos vai beneficiar outros países.
Os principais interessados em que abram muitas vagas são os próprios jovens médicos, muitos dos quais ficam sem especialidade ou adiam a sua formação, repetindo a PNA nos anos seguintes.
Quem tem a competência de abrir vagas de Internato de Formação Específica é o Ministério da Sáude, baseado num mapa de vagas com idoneidade elaborada pela Ordem dos Médicos, cumprindo o Regulamento do Internato Médico.
O Internato de cada especialidade tem um programa e os serviços hospitalares e unidades dos Cuidados de Saúde Primários têm de o cumprir para que a formação seja certificada. São realizadas visitas de certificação pelos membros dos respectivos Colégios de Especialidade. Esta avaliação de idoneidade feita por pares é muito importante pois exige dos serviços a melhor organização para poder, além de exercer as suas funções assistênciais, preparar-se para receber internos. É inquestionável que o cumprimento das exigências para formação pós-graduada de médicos tem impactos positivos na qualidade do serviço prestados aos doentes. Os serviços podem obter idoneidade total ou parcial. Nestes casos, parte do internato é feito em serviços mais diferenciados. Acabar com esta exigência de qualidade na determinação de vagas de internato de especialidade é dar uma forte machadada na qualidade dos cuidados prestados aos doentes.
Os programas de Internato de Formação Específica duram entre 5 ou 6 anos, dependendo das especialidades. No fim, fazem um exame feito por um júri composto por médicos especialistas nomeados pelo Ministério da Saúde e Ordem dos Médicos que lhes atribui a titulação de especialista, podendo ser contratado para exercer funções no âmbito da sua especialidade, quer no SNS, quer no sector privado.
Só nesta altura, com, pelo menos, 30 ou 31 anos (18+6+1+5 ou 6) é que um médico se torna especialista e se torna plenamente útil para a sociedade. No século XXI, num país europeu, nenhum cidadão que precise de um médico se contenta com menos do que um especialista para resolver as suas questões de prevenção (mais atribuídas aos colegas de Medicina Geral e Familiar) ou tratamento (função atribuída a todas) dos seus problemas de saúde. Em nenhuma outra profissão isso se passa. Os médicos indiferenciados não são a solução para o problema de falta de médicos.
A carreira médica oficial começa com o grau de Assistente. Quando o ritmo é cumprido, duas vezes por ano (há duas épocas de exames), abrem concursos para que os recém-especialistas assumam o seu lugar no SNS. A responsabilidade do número de vagas é exclusivamente do Ministério da Saúde e a sua abertura está condicionada pelo Orçamento Geral do Estado. Os recém especialistas concorrem às vagas disponíveis e são colocados por avaliação curricular, entrando-se em linha de conta, entre outras coisas, com a nota que tiveram no exame de saída do Internato. Como em todos os concursos, há serviços mais procurados e outros menos procurados. Um Assistente tem como função principal prestar funções clínicas e praticar actos médicos diferenciados da sua especialidade, na consulta, na enfermaria, no serviço de urgência, no hospital de dia, no bloco operatório ou noutro local do hospital ou centro de saúde. Todos ganham o mesmo, independentemente do hospital onde trabalham, do isolamento em que exercem as suas funções, da cidade (mais ou menos periférica), da qualidade do trabalho que exercem, da produtividade que têm, de estudarem mais ou menos, dos resultados que obtêm, da satisfação dos doentes. Não há nenhum estímulo a ser melhor, a não ser o brio profissional. Nos casos em que a especialidade participe no serviço de urgência, alguns colegas têm no seu contrato a obrigatoriedade de prestar 12 ou 18 horas semanais no serviço de urgência e, como regra geral, os médicos são obrigados a prestar até 150 horas anuais, independentemente da especialidade, caso seja necessário.
Cinco anos depois de ser assistente, um médico tem a possibilidade de ir fazer um concurso para ser promovido a Assistente Graduado. Teoricamente esses exames deveriam ter um ritmo anual, mas já aconteceu os médicos só verem o seu exame marcado e serem avaliados 8 ou 10 anos depois de terem sido Assistentes, sem obterem retroactivos do período em atraso. As funções de Assistente Graduado englobam as de Assistente, mais algumas de coordenação de unidades funcionais ou mesmo de direcção de serviço, na falta de um Assistente Graduado Sénior.
O último grau da carreira médica é o de Assistente Graduado Sénior. A este grau acede-se por concurso ao qual podem concorrer os Assistentes Graduados há mais de 3 anos, sendo o número de vagas determinado pelo Ministério da Saúde. Desde sempre houve muito pouco acesso a este último grau da carreira. Um dos factores que determina a capacidade formativa de cada serviço é o número de Assistentes Graduados Séniores. São muito poucos os médicos que atingem o topo da carreira.
Mas um médico especialista pode trabalhar no SNS ou fora dele. E também pode acumular. Em tempos houve um regime de exclusividade, mas as pessoas deixaram de aderir ao mesmo por os ordenados não serem competitivos e por causa de uma alteração legislativa que entretanto ocorreu. O sistema actual não contempla nenhum bónus pela opção de exclusividade no SNS.
Problema
Ao longo destes últimos anos os médicos foram os funcionários que perderam mais poder de compra. Para compor o ordenado fazem muitas horas extraordinárias, de modo que o SNS ficou dependente das horas extraordinárias para assegurar cuidados básicos como os serviços de urgência.
Com a oferta crescente de oportunidades na medicina privada e com a facilidade em emigrar, o SNS já não é, para muitos médicos, o melhor local para trabalhar, exercer a sua profissão e ser feliz. As causas são conhecidas: salários baixos, não competitivos com as alternativas; poucas perspectivas de progressão das carreiras; obrigatoriedade de fazer muitas horas extraordinárias, roubando tempo ao lazer e à família; ausência de tempo dedicado ao estudo, formação, orientação de internos, docência e investigação.
Como consequência, apesar de Portugal formar médicos em número suficiente, o SNS não os consegue reter e tem falta de médicos.
Propostas de Solução
O novo regime denominado “Dedicação Plena” não satisfaz nenhuma dessas necessidades: não paga o suficiente para assegurar a exclusividade, não liberta tempo para se compor o rendimento noutros locais e não assegura que o vencimento-hora proporcionará mais tarde uma reforma melhor. Não serve para atrair os médicos para o SNS.
Além de a Dedicação Plena ser uma má ideia, a solução também não passa por:
- aumentar ainda mais as vagas nas faculdades de Medicina,
- permitir a formação de especialistas em serviços sem idoneidade,
- colocar médicos indiferenciados a fazer trabalho de especialistas,
- contratar médicos cubanos para fazer trabalho semi-escravo pago ao estado de Cuba,
- aumentar o limite de horas extraordinárias para além das 150h,
- criar obrigatoriedade de permanência que não existe em mais nenhuma profissão.
A volta da atractividade do SNS exige que se encontre uma nova matriz, uma nova maneira de olhar para toda esta questão. Um caminho razoável é criar:
- um Regime de Exclusividade, de adesão livre para quem entra e para quem já está no sistema, que contemple um ordenado-base competitivo,
- um regime de Não-Exclusividade ancorado em 60% do regime anterior,
- para as especialidades que fazem urgência, um bónus,
- os médicos que são orientadores de internos devem ter um bónus,
- os serviços que mantêm as listas de espera dentro de determinados limites, devem ter um bónus,
- os médicos que trabalhem em zonas particularmente carenciadas, deverão ter um bónus,
- as equipas que atinjam objectivos de desempenho baseados em valor para os doentes e utentes também devem receber um prémio,
- manter o limite de horas extraordinárias em 150h por ano para que a necessidade de mais horas ajude a sinalizar a necessidade de contratação de mais médicos,
- a exclusividade apenas abrangeria funções clínicas concorrenciais, não incluindo funções docentes.
Sendo funcionários públicos, os valores da tabela salarial para este regime de exclusividade com os bónus e prémios indicados deve estar no topo das profissões públicas. A tabela salarial dos juízes, que também estão em exclusividade e são um grupo profissional com uma formação bastante longa (embora não tão longa), é um bom ponto de referência.
Sem uma mudança no paradigma, o SNS estará condenado a ficar sem médicos e a colapsar, com prejuízos que não é preciso explicar.