Era um Junho quente, abafado e doloroso. Deitada na cama do hospital onde dias antes fora internada para investigação de uma doença súbita, a minha mãe disse- nos que quando saísse dali nos levaria a passar uma semana a um pequeno hotel de charme que sempre quisera conhecer. Naquele momento a dor desapareceu. Fugimos do quarto irrespirável a planear a viagem. Definimos o percurso, marcámos as paragens, escolhemos as roupas para por na mala, imaginámo-nos a nadar no rio, ouvimos as nossas gargalhadas ao jantar enquanto brindávamos à vida. Não chegámos a ir. A viagem que fez não nos incluiu.

Não houve rio, nem champagne, nem árvores de fruto, ou campos infinitos vistos a partir das venezianas da janela. Não houve riso. Houve doença, sofrimento, impotência, e morte. Não foi o bagageiro que nos levou as malas. Não foi preciso utilizar o Google tradutor para pedir a ementa. Não foi com o gerente de hotel que combinámos as exéquias. Não foi no bar que falámos sobre a vida e sobre a morte. Não se ouviram risos, nem tocava música ambiente nos elevadores. O fim da vida, seja num hospital especializado, ou num lar no Alentejo, é um momento de perda.

Ao contrário do que acontece quando se preparam umas férias, uma viagem de aventura, ou um fim-de-semana, quem está num Lar prepara-se para o fim de um percurso. Perde-se a energia da vida. Não há regresso. Há doenças, dependência, escaras, dor, confusão, medo, fragilidade e solidão. Acompanhar este percurso como deve ser acompanhado – com o respeito pela história de cada vida, e com a dignidade que cada vida exige – requer formação e treino. Requer saber levantar e deitar, tocar, limpar, lavar, vestir, ouvir, abraçar, sorrir, servir com a consciência de que acompanhar na morte não é como sorrir à vida.

O pai da minha mãe teve um hotel em África. Em Angola, no Lobito. Um lugar de vida e de possibilidades, de passagem para alguns, de casa para outros. Um desgosto amoroso que por ali passasse, tratava-se com boa comida e com amizade. Desse período, ficaram amigos que o meu avô reencontrou ao longo da vida, em várias partes do mundo. O meu avô era sinónimo de alegria, fantasia, de renovação. Infinitude. Vejo-o encostado à porta, a perna traçada, o charuto na boca, o sorriso de quem nada teme. Hoje talvez lhe chamassem agente de turismo, e o hotel, edifício clássico da arquitectura colonial, talvez fosse ponto obrigatório de paragem para umas fotografias digitais ao sabor de uma Cuca fresquíssima. Ou talvez estivesse fechado, com o meu avô a fazer contas a um turismo que não existe, a inscrever-se no Centro de Emprego e a convencer o pessoal a utilizar a ampla experiência relacional com os hóspedes, nos cuidados paliativos. Mas creio que não.

A intenção pode ser boa, Senhor Primeiro-Ministro, mas não será o equivalente a pedir-se ao talhante que vá para o bloco fazer uma cirurgia, e ao cirurgião que vá para o talho desmanchar um porco? Quem está num lar, uma população a quem devemos o reconhecimento de um contributo único reflectido em cada passagem pela vida, merece o nosso respeito. Como também devemos respeito a quem se construiu no trabalho como se tudo fosse riso, como se tudo fosse fácil, e não se reconhece se não na efémera leveza dos dias oferecidos.

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