A relação entre os otomanos ou turcos e os europeus, desde 1463 – conquista de Bizâncio ou Istambul pelos otomanos – até 1918, altura em que o Império Otomano, mais conhecido como o “doente da Europa” finalmente caiu, é uma história de guerra.

Durante esses quase 500 anos, os otomanos travaram, só contando as significativas, pelo menos 43 batalhas, 31 das quais, com várias nações europeias.

Destas batalhas, a História da Europa regista duas com especial relevância, naturalmente porque em ambas ganhou. Em primeiro lugar, cronologicamente, temos a batalha naval de Lepanto (perto da Grécia) em 1571, de que resultou a destruição total da armada otomana, talvez a maior do Mediterrâneo à época.

Para juntar uma armada capaz de derrotar os otomanos, foi necessário juntar do lado europeu, o então poderoso Reino de Espanha, com a República de Veneza, Saboia e os Estados do Vaticano (mais tarde integrados na Itália), reunidos sob a designação de Liga Santa Católica.

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A vitória de Lepanto, tem ainda hoje uma enorme importância para o orgulho nacional italiano, encontrando-se representações da batalha, espalhadas por tudo o que é museu nacional.

Sucede que foi ganho de pouca dura. Um ano depois os otomanos tinham construído uma nova frota, voltaram a ter preponderância no Mediterrâneo oriental e nos anos seguintes anexaram o Azerbaijão, Bagdad, Creta e Chipre entre outras conquistas.

A tudo isto não é estranho, a tradicional divisão entre os reinos e repúblicas europeias, sempre aproveitada pelos otomanos.

Como segundo acontecimento, mais relevante da relação belicosa entre otomanos e europeus, chegamos a 1683, com o cerco otomano a Viena. A cidade – no centro da Europa, lembre-se – esteve sitiada durante dois meses.

Não fosse, mais uma vez, a formação duma aliança conjuntural cristã de última hora entre alemães, austríacos e polacos (todos rivais entre si à época) e também a doença que atingiu as tropas otomanas sitiantes, Viena teria sido tomada pelos otomanos e a História da Europa poderia ter mudado, de modo que hoje não podemos adivinhar. Registe-se que nesta guerra, a França de Luis XIV, a maior potencia militar, preferiu ficar neutral. A “solidariedade” europeia tem tradição…

Depois desta derrota, a presença dos otomanos na Europa Ocidental, ficou reduzida aos Balcãs e à Grécia.

Em 1918, o Império Otomano, aliado dos derrotados Impérios Alemão e Austro-Húngaro, viu o que lhe restava dos territórios no Médio Oriente e ainda eram muitos, anexados pelos vencedores da Grande Guerra, ou seja, a França e o Reino Unido. O Acordo conhecido por Sykes – Picot, negociado em 2015, entre a França e o Reino Unido (o ano do genocídio dos arménios pelos otomanos) delineado pelo francês François George Picot e pelo inglês Mark Sykes , ainda antes do final da guerra,  procedeu à divisão do espólio territorial otomano no Médio Oriente, sem olhar a povos, etnias, tradições, culturas, religiões ou rivalidades históricas, no estabelecimento de fronteiras. Assim, os territórios que ficámos a conhecer como Jordânia e Iraque passaram a ser administrados pelo Reino Unido. A França ficou a governar parte da então Turquia, Síria e Líbano. Mais tarde, houve que compensar também outros “vencedores”, entregando uma ilhas do mar Egeu à Itália, Esmirna à Grécia e ceder a Arménia e parte do Curdistão, à Rússia.

Estas alterações de soberania vieram a ser consagradas no Tratado de Sèvres em 10 de Agosto de 1920, que partilhava, mais coisa, menos coisa, nos termos atrás descritos, o Império Otomano, pela Grécia, Itália, Imperio Britânico e França, ficando a Turquia com o que restava, ou seja um território menor que aquele que hoje detém. Finalmente, o tratado previa, note-se, a criação de um Estado Curdo.

Após a queda do Califado na Turquia em 1920 e a fundação da República da Turquia liderada por Kemal Ataturk, o Tratado de Sèvres é substituído pelo Tratado de Lausanne em 24 de Julho de 1923, que definiu as fronteiras da actual Turquia.

Fizeram-se algumas novas trocas de territórios, mas no essencial e para se perceber a intervenção hoje em curso da Turquia na Síria e de novo contra os curdos, é necessário reter, que ao contrário do Tratado de Sèvres, com este novo Tratado de Lausanne, as potencias signatárias ( França, Itália, Reino Único, Japão Grécia, Roménia e Sérvios, Croatas e Eslovenos) renunciaram à independência e autonomia do Curdistão e da Arménia, previstas no anterior Tratado.

Na sua secular tradição expansionista — ainda que permanecendo um país pobre  tem um dos maiores exércitos do mundo e o clima de medo da Guerra Fria, até a fez membro da NATO — a Turquia tem as mão livres (assim a deixem) para  agir como sempre fez com os seus vizinhos: submissão ou aniquilação.

A atitude de Pôncio Pilatos de Donald Trump tem, pois, muito relevantes antecessores históricos, todos eles nossos antepassados do Velho Continente. Que os europeus, hoje se sintam muito indignados com a invasão do território curdo, é compreensível e correcto, mas provavelmente desconhecem, que esse “ direito”  foi oferecido pelos próprios europeus aos turcos, em 1923.

Donald Trump é apenas mais um líder ocidental a trair os curdos, na boa tradição europeia.