Esta semana, um artigo da jornalista Sara Otto Coelho aqui no Observador dando conta das queixas de alguns motoristas da Uber sobre as condições em que trabalham e a subsequente resposta de Rui Bento, director-geral da Uber Portugal, relançaram a discussão sobre este tipo de plataformas e os seus efeitos económicos e sociais no contexto de sectores fortemente regulados pelo Estado como é o do transporte de passageiros em Portugal.

Em Março de 2015 recorri à (infalível) Primeira Lei Arroja da Concorrência (“A concorrência é boa e desejável em todos os sectores de actividade, excepto no nosso”) para analisar em termos gerais a contestação da ANTRAL e, mais especificamente, uma notável petição em que se exigia simultaneamente a interdição da Uber e a liberalização do serviço de transporte de doentes. Em complemento ao que escrevi nessa altura, creio que esta é uma boa oportunidade para reflectir sobre a Uber como fenómeno da chamada “economia de partilha”.

Os benefícios económicos e sociais das plataformas da chamada “economia de partilha” assentam na utilização mais eficiente de recursos existentes, fazendo uso de novas tecnologias para alocação do consumo desses mesmos recursos e contribuindo para gerar novas oportunidades de trabalho flexível e para a sustentabilidade das respectivas sociedades. A concretização destes benefícios exige no entanto um quadro regulatório relativamente aberto e abertura à disrupção (Schumpeter usaria a expressão “destruição criativa”) que estes processos provocam, em especial nos incumbentes dos sectores mais directamente afectados pela inovação.

O caso português representa em larga medida o oposto: um quadro regulatório fechado, burocrático e propiciador de estratégias de rent-seeking ancoradas na protecção estatal dos incumbentes. No caso do actual enquadramento do transporte de passageiros em Portugal, tal significa que só podem operar viaturas que estejam incorporadas em empresas autorizadas a funcionar na actividade.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

As consequências deste enquadramento regulatório e da opção da Uber de se ajustar a esta realidade da forma mais conveniente no curto prazo para a empresa foram que o potencial disruptivo da economia de partilha ficou, em Portugal, em larga medida liquidado à partida. Ao invés de representar uma genuína “economia de partilha”, a Uber veio assim no caso português essencialmente alargar o leque de potenciais beneficiários das rendas existentes no sector a um outro grupo de empresários.

Vista a esta luz, a disputa com o sector do táxi em Portugal deixa de ser uma oposição entre rentistas e inovadores que desejam livre acesso a um mercado e passa a ser antes melhor interpretada como uma disputa entre dois grupos de potenciais rentistas sobre qual a adequada delimitação das fronteiras regulatórias definidas para a actividade e as correspondentes barreiras à entrada. Será talvez possível, ainda assim, argumentar que alargar o leque de rentistas num sector fechado é preferível por aumentar o grau de concorrência, mas a natureza do que está em causa assume contornos substancialmente diferentes da narrativa taxistas vs. inovação.

Como pedagogicamente explicou Rodrigo Adão da Fonseca:

A Uber em Portugal não ampliou as possibilidades no plano laboral, os motoristas estão num regime de subordinação idêntico ao do mero taxista. (…) A Uber está condenada, neste quadro regulamentar, a oferecer um serviço tendencialmente mau e onde os ganhos vão parar aos mesmos do costume – aos “empresários do sector”. Ironia das ironias, a precariedade é provocada por tentarem forçar a Uber a ser igual ao Taxi. O mesmo fenómeno – embora com menor intensidade – ocorre no Airbnb, onde boa parte da oferta já não é feita em contexto de partilha, mas de mero fenómeno de substituição. Deixassem a Uber (ou Airbnb) e a generalidade das plataformas serem expressões efectivas de uma economia de partilha, e teríamos mais rendimento nos bolsos de quem presta efectivamente o serviço, e menos nas mãos dos intermediários que vêem no quadro disléxico criado pelos reguladores oportunidades para gerar rendas de investimentos financeiros protegidos.

Em suma, não se pode exigir à Uber (nem a qualquer outra empresa) que seja força de liberalização de sectores rentistas. Mas, uma vez feita a opção (legítima) pela Uber de se adaptar ao enquadramento vigente, não pode também a empresa invocar aquilo que efectivamente, em casos como o português, não representa. Combater um paradigma político de economia extractiva assente em múltiplos processos de rent-seeking exige, infelizmente, bastante mais do que novas plataformas tecnológicas e slogans atractivos.

Professor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa