Dizer que a força é por vezes necessária, não é cinismo. É o reconhecimento da História, das imperfeições do homem e dos limites da razão.
Barack Obama

Quando, no final de 2021,a Federação Russa começou a concentrar forças junto da fronteira ucraniana, acreditava-se que o desfecho era inevitável e a Ucrânia estava condenada. Mas a inesperada  e extraordinária resistência à tentativa russa de blitzkrieg, fez rapidamente mudar os planos ocidentais. A ajuda começou a afluir. Liderada pelos EUA, mas limitada, reactiva e cautelosa, para não dizer receosa.

Apenas em dose q.b., suficiente para não perder, mas não para ganhar.

Na verdade, sem esse receio atávico, até a invasão podia ter sido evitada pela simples realização de exercícios conjuntos entre os EUA e a Ucrânia, na Ucrânia. Na minha opinião, a FR não se teria atrevido a atacar.

Mas isso não aconteceu e Putin desencadeou a invasão, entre outras razões, porque leu como fraqueza, os sinais que o Ocidente deu. A tumultuosa retirada do Afeganistão, confirmou o seu diagnóstico e daí à decisão de avançar foi um mero passinho de criança.

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Este modus operandi do Ocidente e particularmente dos EUA, não é novo, pelo contrário, é comum nas últimas dezenas de anos. A um empenhamento estratégico inicial, segue-se algures, a meio do percurso, um retraimento generalizado que se limita aos mínimos, para não perder demasiado.

Isto deve-se, na minha opinião, a uma predisposição cultural e até civilizacional que não confere estrutura para guerras longas e apenas admite compromissos militares, políticos e económicos curtos e decisivos, com triunfos fáceis e sem grandes baixas.

O Ocidente, particularmente a Europa, desenvolveu uma radical predisposição moral contra o uso da força, agindo como se acreditasse genuinamente que todos os problemas podem ser resolvidos fora da História, com diálogo, comércio, soft power e o refinamento do Direito Internacional.

É todo um paradigma a determinar a cosmovisão de políticos e pensadores do mainstream ocidental, condicionando irremediavelmente as leis, as organizações, os meios e os procedimentos relativos à guerra. As intelligentsias ocidentais, hostis à guerra, às armas, aos exércitos, a tudo aquilo que era encarado como parte de um fenómeno do passado, sem lugar reservado no mundo idealizado, optaram por fundir as espadas para fazer charruas, porque acreditaram, genuinamente, que elas eram desnecessárias.

Amantes da paz, ficaram chocados e ignoraram ostensivamente Barack Obama, em Oslo, quando lhe foi entregue um polémico Nobel da Paz e disse ali, ingrato, em plena reunião pacifista, que “um movimento pacifista não seria capaz de travar os exércitos de Hitler” e “dizer que a força é por vezes necessária não é cinismo – é o reconhecimento da história, das imperfeições do homem e dos limites da razão. […] Sim, os instrumentos da guerra têm um papel a desempenhar na preservação da paz”.

Para as kantianas intelligentsias ocidentais, quem iria lutar se a realidade nos devolvesse à História era uma questão que nem sequer fazia sentido, porque não acreditavam verdadeiramente que isso fosse possível.

Quando a Federação Russa invadiu a Ucrânia, fazendo tábua rasa do Direito Internacional, os amedrontados e relaxados países ocidentais deram por si a orbitar Vénus, perante perigosas sombras que, a leste, estavam em trânsito acelerado para Marte.

A reacção foi menos tíbia do que os russos esperavam, mas mesmo assim, fraca. Apenas os aliados próximos da Ucrânia e o Reino Unido deram sinais de estarem a ler bem a situação e foram mostrando uma vontade real de enfrentar a situação tal como ela se apresentava e apresenta.

O tempo passou, a guerra enredou-se nas trincheiras, mas a FR ainda tem boas razões para continuar a pensar que lhe basta determinação e tempo. Há dias, Vladimir Putin, no discurso do Dia da Vitória, enquadrou a sua guerra contra a Ucrânia no quadro de uma luta existencial com o Ocidente, porque foi essa aposta na volubilidade ocidental que o levou a avançar. Parece ainda acreditar nela.

Ora perante uma clara ameaça existencial à segurança, prosperidade e liberdade da Europa, prioridade que é também entendida como estratégica pelos americanos, o Ocidente vem apoiando o esforço ucraniano às pinguinhas, de forma reactiva, apenas o necessário para garantir que os russos não logram facilmente os seus objectivos, mas sem os pressionar suficientemente para os obrigar à retirada, pelo uso do único argumento que o Kremlin respeita e compreende: a força!

A guerra está nisto: Quando os ucranianos avançam, os russos recuam, e limitam-se a ganhar tempo para se reconstituirem, porque os ucranianos não têm meios suficientes para explorar o sucesso e resolver o problema de uma vez por todas. E assim a guerra continua e o custo em sangue e destruição aumenta. É o paradoxo da contenção e do gradualismo. Se a Ucrânia não tivesse tido que esperar meses por artilharia, HIMARS, veículos blindados, defesa aérea, guerra electrónica, mísseis de longo alcance, aviões, etc, a guerra não estaria a balancear nas alternativas de um dilema que não existe a não ser nas cabeças apaziguadoras de alguns líderes ocidentais, a começar pela Administração americana.

O padrão russo é claro: a cada iniciativa a Rússia anuncia respostas devastadoras, caso alguém interfira no seu plano. Fê-lo logo no dia da invasão.

A cada cautelosa reavaliação das intenções do Ocidente, surgem de imediato avisos apocalípticos, anúncios musculados, exóticas personagens das lideranças russas a proferir ameaças explícitas e implícitas. É a gesticulação de quem acredita estar a dirigir-se a uma audiência de timoratos e covardes.

Uma vez concretizado um novo passo da ajuda, o bully desvaloriza, informa que afinal os HIMARS foram todos destruídos, que os obuses já não estão lá, que os carros de combate não servirão para nada, que os mísseis afinal não valem nada, etc.

Ainda agora, à medida que se concerta o próximo passo, ou seja, o fornecimento de aviões de 4ª geração, os russos avisam de “riscos colossais”.

Que riscos? cabe perguntar. Porventura a Federação Russa irá invadir a Ucrânia?

O bluff é óbvio mas, inacreditavelmente, ainda tem efeito.

Ora, tal como no recreio da escola, o agredido tem de avançar para que o bully entenda que não estará mais na posição fazer aquilo que está acostumado a fazer. Se recuar, o bully repete. E por isso o Ocidente não pode retroceder e apaziguar, porque isso apenas terá como resultado o crescimento do bully.

Os presentes apelos à paz, por aliados abertos ou crípticos da Rússia, inscrevem-se na estratégia do bully, porque lhe legitimam ganhos obtidos pela força bruta.

Já aconteceu na Chechénia, a Rússia fez a paz e pouco tempo depois, lambidas as feridas, lançou o seu ataque devastador.

É isto que tem de se evitar. A lentidão e a hesitação na ajuda, por medo da “escalada”,  levam a que a presente oportunidade para ajudar os ucranianos a retomar suas terras se esteja a esvair rapidamente. As modestas transferências de armamento foram efectuadas, as unidades foram treinadas, os planos elaborados. Há todas as razões para acreditar que a contraofensiva terá algum sucesso, mas a questão é que se não for suficiente para fazer colapsar o exército russo, não criará as condições para uma vitória estratégica. E nesse caso, a Rússia não se sentirá ela mesma nas alternativas de um dilema de derrota que a obrigue a ir à mesa das negociações de rabo entre as pernas.

Não é a cautela, mas a confiança que deve guiar a acção do Ocidente. Não é a mentalidade defensiva, mas sim a ofensiva. No futebol, tal como na guerra, para ganhar o jogo há que “marcar golos” e para isso é preciso atacar, manter o ímpeto,tirar a iniciativa ao adversário.

E isso passa por fornecer aos ucranianos o que eles precisam para atacar e vencer. Tornando os territórios ocupados insustentáveis para os militares russos. Levar a guerra ao território russo. Fornecer os ATACMS de longo alcance para os sistemas HIMARS, os aviões, os carros de combate em quantidade, os sistemas de guerra electrónica que neutralizem os que os russos vêm crescentemente usando.

Essas capacidades têm de chegar às forças ucranianas, o mais depressa possível, para explorar ao máximo o eventual sucesso das contraofensivas ucranianas que se esperam para breve, reduzindo sistematicamente as posições russas na Crimeia. É também importante sinalizar aos russos e ucranianos, que o Ocidente não vai desistir e será inevitável, à medida que o tempo corre e a guerra se mantém, que a Ucrânia fique paulatinamente mais forte.

Não há stocks suficientes nas reservas de guerra, depauperadas em função das erradas opções políticas dos últimos anos?

Pois então fornecer meios actualmente nas unidades e aceitar o risco de que, até que sejam reabastecidas, essas unidades estarão temporariamente em menor estado de prontidão.

O momento é agora, a carne tem de ser colocada no assador, quando o adversário cambaleia, não se lhe dá tempo para se reequilibrar, é preciso manter o ímpeto e levá-lo ao chão. Porque se não fizermos isso, corremos o risco de que o adversário nos faça isso a nós, aproveitando a oportunidade que lhe demos.

Quanto aos F-16, trata-se do avião de combate que existe em maior número em todo o mundo, há milhares espalhados por países dos cinco continentes. A maioria dos países da OTAN começou a transição para aviões da 5ª geração, é o momento certo para acelerar o processo e enviar os F-16 para a Ucrânia em quantidades suficientes.

Uma vitória da Ucrânia é uma vitória do Ocidente. Sim, irá ter custos, mas esses são já inevitáveis, porque uma vitória russa será infinitamente mais cara. Dinheiro investido agora na revitalização das indústrias de defesa, na construção de forças de defesa resilientes e consistentes, tem como retorno uma muralha dissuasora face a novos aventureirismos de tiranetes, oligarcas e autocratas que estão neste momento a ver o que acontece para daí extraírem conclusões.

Si vis pacem, para bellum, como dizia Vegécio ou, na versão country de Kenny Rogers (The Coward of the County), “não é necessário lutar para ser homem, mas ser homem implica por vezes ter de lutar”