Em 2020,José Matos Fernandes, o então Ministro do Ambiente e da Acção Climática, referindo-se aos barcos eléctricos que a Transtejo ia adquirir, garantiu que «Portugal quer estar na linha da frente da mudança, estamos muito acima da média e queremos manter-nos acima da média no compromisso da descarbonização e transição energética».

No ano seguinte, reiterou que íamos passar a ter «a principal operação de transporte fluvial de passageiros eléctrica do mundo».

Já em Fevereiro de 2023, o seu sucessor Duarte Cordeiro anunciou: «Podemos ser uma referência numa travessia desta dimensão com barcos elétricos. Passaremos de uma situação incómoda para uma situação de referência de que nos orgulharemos a nível internacional».

Portanto, trata-se de uma área em que não só somos muito acima da média, como estamos na linha da frente, na qual somos uma referência a nível internacional, tendo mesmo a principal operação do mundo, óbvio motivo de orgulho pátrio. Não sei qual a opinião do leitor, mas, para mim, se não é no âmbito da culinária com bacalhau ou da prática de actividades lúdicas em praias, desconfio muito quando me dizem que temos assim tanto prestígio mundial. Melhor do mundo a confeccionar bacalhau à Braz? Acredito. A ter praias ideais para o surf? Também. A ter barcos eléctricos? Hum.

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Se electrificar a frota que faz este tipo de travessias é assim tão vantajoso, porque é que países mais ricos do que o nosso, com mais necessidades de trajectos destas, não apostam tanto quanto nós?

É porque somos o povo mais eco-parolo do mundo. Basta dizerem-nos que qualquer bugiganga é boa para o planeta e abrimos logo a carteira. Em princípio, alguém falou em “tecnologia verde” ao pé de um governante português e depois foi conduzir o cordeirinho ao matadouro. E nem foi preciso mentir. É mesmo tecnologia verde. Mas não é verde no sentido de ser amiga do ambiente. É verde porque ainda não está madura.

Parece que um especialista em transportes chamou a atenção de António Costa para isso mesmo: «Em 2020, poucos meses antes da adjudicação aos estaleiros das Astúrias, uma carta enviada ao primeiro-ministro e tornada pública por um especialista e consultor no setor dos transportes — Fernando Grilo — apontava para várias fragilidades da solução colocada a concurso, a começar pela inovação. A Transtejo lançou um concurso para um navio que não existia no mercado, que era um protótipo. “Não existe atualmente em operação de transportes de passageiros qualquer ferry 100% elétrico que reúna em simultâneo o comprimento, a capacidade em passageiros e velocidade e a autonomia constantes dos parâmetros dos concurso”, avisava

Infelizmente, a carta foi redigida por um especialista em transportes e não por um especialista em deslumbramento português. Caso contrário, saberia que não vale a pena demover um político quando há a possibilidade de ser o primeiro a adquirir quinquilharia moderna que os seus congéneres ainda não pensaram em comprar. Como aqueles saloios que, no início dos anos 90, andavam a arrastar os primeiros telemóveis, uns bacamartes que pareciam malas de viagens com antena. Eram caros, imprestáveis e pesados, mas impressionavam. No fim, o papalvo acabava por fazer tantos telefonemas quanto hérnias discais.

Se tivéssemos este Governo no século XV, mal se tivesse ouvido dizer que um tal de Gutemberg andava a trabalhar numa invenção, tinha havido um ministro a mandar matar todos os gansos do Reino, por não se precisar mais de penas para escrever.

Tão fascinados pela hipótese de ter a primeira frota de cacilheiros eléctricos, a administração da Transtejo optou por um negócio em que primeiro comprava os barcos e só depois, noutro concurso, escolhia o vendedor de baterias, para ser mais barato. Só que, afinal, acabou por comprar ao fabricante dos barcos e mais caro. O Tribunal de Contas apanhou o esquema e agora não há baterias para os barcos. Em vez de cacilheiros, quaselheiros. Faltam peças. O Alentejo caracteriza-se pelo montado, a Transtejo é pelo desmontado.

Vamos lá ver, a construção naval não é assim tão complicada. Mesmo aquela com o virtuoso objectivo de salvar a humanidade da destruição climática. É, aliás, das actividades mais antigas da humanidade. Vem na Bíblia. E até Deus, que é Todo-Poderoso, não se põe a inventar quando quer encomendar um navio. Eis como se dirige ao seu empreiteiro, Noé: “O fim de toda a humanidade chegou diante de mim, pois ela encheu a Terra de violência. Vou exterminá-la juntamente com a Terra. Constrói uma arca de madeiras resinosas. Dividi-la-ás em compartimentos e calafetá-la-ás com betume, por fora e por dentro. Hás-de fazê-la desta maneira: o comprimento será de trezentos côvados, a largura de cinquenta côvados, e a altura de trinta côvado. Ao alto, farás nela uma janela, à qual darás a dimensão de um côvado. Colocarás a porta da arca a um lado, construirás nela um andar inferior, um segundo e um terceiro andar”. Gn 6:14-16.

Simples e directo. Repare-se que Deus comissiona tudo ao mesmo fornecedor. Não engendra um esquema manhoso em que pede a Noé para fazer só o casco do navio, enquanto Ele finge que tem um conhecido que orienta o betume mais barato, mas afinal vai-se a ver e não, Noé acaba por tratar do material e no fim de tudo divide o lucro com Ele.

Um processo bem conduzido, sem nada a apontar pelo Código da Contratação Pública. A Transtejo bem tentou copiar, mas não conseguiu. Por causa da arca de Noé, o mundo tem hoje todos os animais da Criação; à conta destes barcos eléctricos, em Portugal ficámos só os patos.