O partido social-democrata da Alemanha é o partido mais antigo do país – tão antigo, aliás, que até Bismarck teve oportunidade de se lhe opor. Desde o século XIX, o SPD sobreviveu a todo o tipo de regimes e crueldades: depois de uma conturbada fundação, conquistou apoios, congeminou, construiu e eventualmente condenou a República de Weimar, foi banido durante o Terceiro Reich e regressou depois da guerra para a refundação democrática e a experiência europeia.

A razão de ser do partido assenta na ideia de que a justiça social pode ser alcançada dispensando a violência da revolução e da luta de classes. Esse desvio precoce à ortodoxia marxista é um ato político que vale por princípio, mas os compromissos que vieram a definir a social-democracia alemã ajudaram o país e o continente a resistir às suas piores tentações totalitárias, oferecendo um caminho viável de compatibilidade entre os valores da esquerda e a democracia.

Atualmente entregue a um governo de “grande coligação” com os democratas-cristãos da CDU, o partido enfrenta um importante momento de definição. No próximo ano haverá eleições federais e, com elas, espera-se a retirada de Angela Merkel, que governa o país há 15 anos. O que poderia parecer o momento ideal para recuperar a liderança do governo, até pela dificuldade que a direita tem revelado para encontrar um sucessor plausível, é antes uma situação de fragilidade existencial, já que as sondagens mostram o partido no terceiro lugar, a 20 pontos da CDU e atrás dos Verdes, parceiros de coligação no seu último governo, liderado por Gerhard Schröder.

Nesse contexto, os últimos anos têm sido dedicados ao tumulto interno, que se tornou evidente com as eleições para a liderança, em 2019, ganhas por uma sugestão de liderança bicéfala proveniente da ala radical do partido. Castigados eleitoralmente pelo longo domínio de Merkel, os militantes preferiram a esquerda e rejeitaram a continuação de uma política de apaziguamento. Agora, chegada a altura de apresentar um candidato a Chanceler, seria de esperar o aparecimento de um Corbyn à Berlim, devidamente abençoado por Greta Thunberg, que assegurasse ao país a continuação da verdadeira luta em tons de vermelho.

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A escolha de Olaf Scholz, anunciada na última semana, acabou por parecer anticlimática – em vários sentidos. Do atual ministro das Finanças, reconhecido pela falta de carisma e amor pela tecnocracia, dificilmente alguém terá um cartaz no quarto, e da bicefalia radical o partido recuou cautelosamente para apresentar a sua versão de Merkel, que aí poderá encontrar uma espécie de vitória última para o seu legado. Sob a ameaça da realidade, foi escolhido o candidato experiente, par de mãos seguras que conquistou elogios pela liderança demonstrada na elaboração do plano económico de resposta à pandemia (e com isso ofereceu aos democratas-cristãos um salto assinalável de popularidade). Ainda assim, é errado pensar na candidatura de Scholz como um assomo de moderação ideológica, um regresso à ideia fundadora da social-democracia e uma nova plataforma de salvação para a deriva radical da esquerda europeia.

É possível que a CDU erre (novamente) na sucessão de Merkel, perca o domínio do centro e se exponha a um ressurgimento do SPD e, se assim for, a escolha de Scholz será vista como uma ideia extraordinária e presciente, que neutraliza a ameaça verde e acelera uma improvável coligação que devolve o governo à esquerda. No entanto, para lá desse cenário cor-de-rosa, é importante dedicar mais tempo à hipótese verde.

Por entre tantos caracteres gastos em lamentos com a nova direita e a sua influência na política europeia, pouca atenção tem sido dada à reconfiguração da esquerda de que o sucesso dos Verdes na Alemanha é apenas um exemplo. A desatenção é proporcional aos elogios à “modernidade” de uma proposta política que se veria satisfeita com o desaparecimento dos bifes, da indústria pesada e dos automóveis familiares. Se o desígnio dos sociais-democratas é o compromisso com a realidade, o dos verdes é o radicalismo de corte profundo e o seu sucesso recente já teve tradução na agenda política, visível na guinada à esquerda da liderança do SPD, ou na recente aprovação de um pacote de legislação climática com um custo superior a 50 mil milhões de euros em quatro anos (evidentemente criticado pelos radicais, que nele encontraram insuficiências e falta de ambição).

É demasiado cedo para perceber tudo o que vai a votos no próximo ano, mas à esquerda adivinha-se um sufrágio de identidade. Com Scholz, o SPD repete o plano de apresentar um candidato pragmático e com dificuldades para gerar entusiasmo, que precisa de convencer o partido ainda antes de enfrentar o país (e desta vez os militantes já tiveram oportunidade de o rejeitar pelo voto). Por outro lado, a alguns radicais é sempre concedido o luxo da irresponsabilidade e, a coberto das bandeiras climáticas, um escrutínio modesto, relaxado e compreensivo. Não é impossível que as ideias mais acertadas acabem por sofrer uma derrota dolorosa simplesmente porque foram representadas pelo candidato errado.

De uma maneira ou de outra, serão eleições interessantes. Contrariando a narrativa instalada, talvez a esquerda europeia ainda seja capaz de se mexer, mas só o possa fazer para um sítio muito distante da realidade. É uma questão de Zeitgeist, não de pessimismo.

João Diogo Barbosa, jurista (@jdiogospbarbosa no Twitter), é um dos comentadores residentes do Café Europa na Rádio Observador, juntamente com Henrique Burnay, Madalena Meyer Resende e Bruno Cardoso Reis. O programa vai para o ar todas as segundas-feiras às 14h00 e às 22h00. 

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