Este é um dos grandes temas da sociedade do século XXI, a par da legalização do aborto, das drogas, do casamento homossexual ou da prostituição. São as chamadas questões fraturantes, que dividem opiniões na discussão política, social, judicial e, sobretudo, nos campos da ética e da moral. São temáticas complexas, pois a aprovação das mesmas implica uma mudança cultural. Algo que a sociedade tanto teme…

As discussões centram-se numa análise entre os prós e os contras e os impactos da sua aprovação, ou não. Isto acontece em todos os domínios. Os juristas, os políticos e os líderes religiosos apresentam os seus argumentos a favor, ou contra, tentando desta forma persuadir o público. Hoje em dia podemos alargar este lote também aos jornalistas, aos influenciadores e àqueles que, de certa forma, têm exposição mediática e se debruçam sobre estas questões, tendo muito ou pouco conhecimento sobre.

No entanto, se existem temas em que conseguimos claramente definir uma maioria e uma minoria, um lado “bom” e um lado “mau”, os temas fraturantes são demasiado complexos para isso acontecer.

As análises de prós e contras em que centralizam o debate são demasiado equilibradas para que haja uma tomada de posição direta. É interessante ver que aqueles que se regem pela tolerância, ao invés do fanatismo, concordam parcialmente com todos os argumentos apresentados. Tanto os a favor, como os contra.

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Nestas discussões existem sempre estes dois tipos de posição. Os fanáticos, que não precisam de debate para tomar a sua posição, pois já está definida com base em preconceitos e pressupostos definidos individualmente ou em coletivo; e os tolerantes, que preferem centrar atenções no debate racional, ouvindo opiniões de diversas pessoas de diferentes áreas, tentando assim construir e definir a sua própria posição.

Para a sociedade democrática, pretende-se que a discussão seja conduzida pelos tolerantes. Que se centralize a análise no debate racional, alimentado pela academia e pelo conhecimento empírico, e que cada um construa individualmente a sua própria posição – Sapere aude!. Esta lógica enquadra-se no contexto de uma sociedade progressiva, que prima pelo conhecimento científico e que vê neste a fonte primária de tomada de decisão.

Acontece que a sociedade não é apenas movida pelo conhecimento científico. Existem diversas variantes como, por exemplo, as motivações religiosas, políticas ou pessoais, proporcionadas pelo contexto social, económico e familiar de cada individuo. Todos estes fenómenos contribuem para a construção de personalidade, tornando cada um de nós seres únicos, com gostos, interesses, motivações e crenças muito particulares.

A personalidade de cada cidadão é aquilo que promove a dificuldade de decisão nos temas fraturantes da sociedade. O caso da Eutanásia está envolto em particularidades. No caso do casamento homossexual, a discussão prendia-se com a liberdade de expressão individual. A despenalização do consumo de canábis assenta na liberalização de uma substância nociva ao individuo, sendo um assunto com impactos na saúde pública, legais e sociais. A prostituição evoca questões morais sobre a posição da mulher em sociedade. Mas, excetuando-se a Eutanásia, nenhum destes temas envolve, diretamente, a morte de um individuo.

A morte é o fim da linha. É, como indica a sapiência popular, o “único dos males que não tem remédio”, sendo transversal e irreversível. Pode caracterizar-se por morte natural ou não natural e, nesta última categoria, enquadram-se o suicídio, homicídio ou acidente. A Eutanásia, atualmente, é considerada crime – ou homicídio privilegiado (art. 133.º do Código Penal) ou homicídio a pedido da vítima (art. 134.º do Código Penal).

O que foi aprovado em Portugal é a despenalização e a regulamentação deste ato. Algo que já foi discutido e aprovado em alguns países da Europa (no caso dos Países Baixos, da Bélgica, do Luxemburgo e Suíça), alguns estados dos EUA, e também no Canadá, Uruguai, Colômbia e Austrália.

Não quer dizer com isto que devamos automaticamente aprovar esta medida, pois assim como cada indivíduo tem o seu contexto e a sua personalidade, também os países são diferentes entre si. Apesar das diferenças culturais, existem argumentos que são globalmente aceites. Só a pessoa tem o direito de decidir sobre a sua própria vida. A liberdade de escolha é um argumento a favor da morte medicamente assistida. Perante um cenário de sofrimento prolongado e irreversível, o individuo deverá ter o direito de decidir sobre aquilo que pretende que seja feito. Da mesma forma que escolhe emigrar, casar ou comprar uma casa, o individuo deverá ter essa liberdade de escolher conscientemente o que, para ele, é o melhor caminho.

O facto de essa liberdade não ser permitida obriga a que o médico se foque apenas no adiamento da morte, podendo prolongar o sofrimento. Neste caso, o foco centra-se no exercer da função do médico e não no “bem-estar” do paciente.

O argumento de conseguir uma morte com dignidade é, também, muito utilizado pelos defensores da eutanásia. De facto, se um individuo portador de uma doença terminal está consciente daquilo por que irá passar, deverá ter o direito de poder decidir se quer passar por um doloroso caminho ou se pretende pôr fim à vida, em paz, evitando esse sofrimento.

A Eutanásia não deverá substituir o investimento nos cuidados paliativos. Não são, nem podem ser, mutuamente exclusivos. A morte medicamente assistida deverá ser mais uma solução disponível para o doente. Não pode ser uma resposta fácil ao problema. Deverá existir para servir o doente, caso seja esta a sua decisão.

Do outro lado da moeda existem argumentos contra, que também devem ser colocados em cima da mesa da decisão. Há profissionais de saúde de ambos os lados da equação. Muitos defendem que é dever do médico lutar pela vida do paciente até ao fim. O Regulamento de Deontologia Médica, publicado no DR, diz que “ao médico é vedada a ajuda ao suicídio, a eutanásia e a distanásia” e que cabe ao médico “(…) respeitar a dignidade do doente no momento do fim da vida”. Defendem também que o papel do médico enquanto cuidador poderia ser colocado em causa.

A possibilidade de haver pressão por parte dos médicos, familiares ou qualquer outro interveniente, no processo, é também uma preocupação para os cidadãos. Por finalidades financeiras ou outros objetivos indesejáveis, correr-se-á o risco de que o processo de morte assistida seja por influência de terceiros e não uma decisão consciente do doente.

Os requisitos estabelecidos como “mínimos” para praticar a Eutanásia também é algo sugerido como um perigo. Em cima da mesa estão várias propostas, mas de forma genérica, poderá pedir este procedimento quem for maior de idade, esteja consciente da decisão, portador de uma doença terminal e de sofrimento prolongado. Teme-se que estes critérios sejam alargados e que se estenda, por exemplo, a todas as idades, incluindo bebés.

Perante esta “guerra positiva” de argumentos, cabe ao cidadão tomar a sua posição. Embora a proposta tenha sido aprovada pela Assembleia da Republica, não está posta de lado a possibilidade de referendo sobre a matéria.

Enquanto cidadão, coloco-me do lado a favor da Eutanásia. Considero que o indivíduo tem de ter, pelo menos, a liberdade de poder optar pela morte medicamente assistida. Deve ser garantida a liberdade de terminar com o sofrimento prolongado, pois só o doente tem o direito a uma decisão desta dimensão. Deve ter o direito de pôr fim à vida em paz, no seu país, sem necessidade de “fugir” para países onde esta prática é legal. O direito de ser acompanhado médica, psicológica e juridicamente no processo de tomada de decisão também deve ser garantido. Processo esse que deverá ser avaliado, para confirmar a validade dos requisitos impostos, impedindo que haja facilitismos e assegurando o rigor e a exigência numa decisão irreversível. Deverá ser protegida a integridade do médico, podendo estes alegar objeção de consciência, sem consequências futuras.

Todos os cuidados paliativos deverão seguir os procedimentos normais, sem que haja incentivo à Eutanásia. A decisão inicial deverá partir única e exclusivamente do doente. Coloco-me, portanto, do lado da liberdade de decisão. Esta deve de ser garantida, prevalecer e ser assegurado o bem-estar do doente. O conceito de bem-estar nestes casos é ambíguo, mas deverá ser o doente a defini-lo. Hoje demos um passo em frente, rumo ao progresso social.