Sejamos família dos que não têm família, pátria dos que não têm pátria.
João Paulo II
Que fazer com os migrantes? Eis interrogação mais dramática do nosso tempo.
Kamel Daoud, é um intelectual argelino, combatente por um islão iluminista, que continua a viver entre Ouran e Paris, apesar de condenado à morte por um imã. Ensaísta e romancista (Meursault, Contra Investigação, Editora Teodolito) assina no semanário Le Point uma crónica, escrita quase sempre “no fio da navalha”, que respigo e divulgo.
Perante o afluxo de refugiados, o que fazer? É a interrogação de consciência que Daoud coloca (28/6/18), dizendo ser a pergunta que mais teme lhe façam. É de facto o grande desafio para o mundo, a grande interrogação nos dias que vivemos.
A vaga de migrantes marca o fim de uma época em que o emigrante “era viajante, nómada, descolonizado, inconformado com o destino sem saída na sua terra, aventureiro, para passar a ser hoje vitima, desespero, grito, cativeiro, trunfo eleitoral”.
A pergunta pressupõe uma outra, mais dramática: o que devemos fazer perante os migrantes que “nos entram em casa”? “Prendê-los, separá-los e tratá-los como criminosos, à maneira de Trump?” Deixá-los morrer, no Mediterrâneo, por onde chegou a Europa, outrora um mar de aventura, de progresso e de esperança que é agora um mar de cadáveres? O que devemos responder… eu, o leitor, nós?
Não é um problema apenas do Ocidente, coloca-se por toda a parte, no Magreb, “junto da minha casa, em Oran”, denuncia Daoud, e no resto do mundo: os migrantes não estão a chegar apenas à Europa ou aos EU, “enchem as ruas da Argélia, de Marrocos, da Tunísia, da Jordânia. E reage-se ali como em todo o lado: com rejeição, ou medo, desconfiança, indignação, protesto, racismo ou compaixão, caridade desorganizada”
A África acusa o Ocidente pela infelicidade do seu destino, julga a Europa em nome do politicamente correcto, por ter sido colonizadora pregando a moral universal. “Mas essa acusação deve ser alargada ao mundo árabe”. assume o intelectual argelino.
“Reduzir a questão migratória a Trump, Salvini ou Orban é esquecer os camiões de reconduções desumanas em massa dos migrantes sub-sarianos pela Argélia. É ignorar o racismo nos outros Estados do Médio Oriente”, escreve.
E porque é tão difícil responder à pergunta?
Porque é fácil dizer que temos um dever moral de acolher, mas não será legítimo ter medo de receber um migrante maliano na nossa cidade, no nosso país? Sentirmos insegurança, ameaça, crimes, invasão?
É fácil dizer frases bonitas, manifestar nobres intenções, mas difícil passar a actos que possam pôr em risco a segurança dos nossos bens, dos nossos filhos, do nosso conforto, assume Daoud.
“Há páginas inteiras na imprensa do Médio Oriente e da África e da Europa sobre o racismo, a rejeição e a discriminação na Europa. Mas que dizer das expulsões em massa de africanos, como os designa a imprensa islamista da Argélia, que são reduzidas no Médio Oriente a faits divers, a um combate contra ´doenças estrangeiras´, `meras` manifestações de delinquência e criminalidade”.
“Se apelo para que os outros abram os braços, então tenho de abrir os meus. Se peço contas ao Ocidente por se fechar, então tenho de pedir contas à Arábia Saudita e à Argélia por fazerem o mesmo”. “Não existe solução para mim: ter medo é legitimo, mas recusar que este medo seja paralisante é um dever, acolher é uma responsabilidade de todos”. “Como posso exigir ao Ocidente aquilo que não quero exigir a mim mesmo?”, interroga frontalmente Daoud.
E se esse medo não paralisa os governos, então é aproveitado pelos populismos, antecâmara de novos fascismos que usam o migrante para agitar os fantasmas da raça, da segurança, da nossa identidade. A questão dos migrantes é explorada pelos extremismos políticos, unidos no empenho de alimentar o sentimento anti-europeu, fomentar o regresso “às nações”. Um medo que poderá precipitar a Europa para cenários imprevisíveis. “Os medos de hoje fabricam os crimes de amanhã”.
A pergunta – retomo Daoud – “transforma-se então noutra, mais concreta: que fazer com o migrante? Deixá-lo morrer? Mas a morte do outro… é a morte de nós”.
Os Europeus devem ter presente a matriz da nossa Europa, uma região do mundo cujo mito fundador é um mito da emigração.
É esse o tema da Eneida. Não tendo conseguido salvar a sua Troia, no Médio Oriente, Eneias cumpre a vontade dos deuses e parte em busca de outra pátria. Atravessa o mar, não no regresso ao conforto da sua Ithaca como Ulisses, mas para fundar uma pátria nova. E é assim que nasce… Roma. Um mito fundador que o governo italiano devia ser o primeiro a não esquecer. Todos nós europeus, portugueses, somos herdeiros de recém-chegados. O grande desafio do nosso tempo é organizar uma política da emigração justa, viável, bem-recebida, aceitável pelos europeus. A Europa não conseguirá ser de facto o refúgio e o emprego do mundo.
Para isso, para nos reencontrarmos com o espírito europeu, devemos neste caso, in extremis, construir “um equilíbrio dinâmico entre a insensibilidade, que nalguns casos será mesmo crueldade, a compaixão, a generosidade”, a inteligência. Por agora o medo e a insensibilidade parece ter avançado, chega-se mesmo a afirmar querer expulsar 500 000 migrantes!
Ora não é com uma política de deportação em massa inumana, incompatível com a sensibilidade europeia, que se resolve o problema.
A solução revela-se, então, num outro registo: evitar que haja migrantes.
Para isso é imperativo adoptar uma nova política externa europeia, uma intervenção nos países de partida para dissuadir a migração, estancar a hemorragia do capital humano, vital, afinal, para o desenvolvimento próprio, para o futuro dessas regiões agora devastadas. E, antes de mais, acabar com as intervenções de lesa-humanidade, como as que governos dos Estados Unidos e da França fizeram, designadamente na Síria e na Líbia. Ajudando decisivamente no derrube de todos os regimes laicos que continham o islamismo. Obama já o terá reconhecido. Ataturk hoje não teria vencido.