“O espectro que ronda a Europa” é o título de um estimulante dossier publicado na edição de Outono do Journal of Democracy (Volume 27, Nº 4, pp. 20-98). Os editores recordam que a frase ficou célebre por abrir o Manifesto Comunista de Marx e Engels, em 1848. Só que, nesse panfleto, o espectro tinha um nome: era o espectro do comunismo, que Marx e Engels obviamente aplaudiam. No caso presente, acrescentam os editores do Journal of Democracy, não sabemos bem qual é o nome desse espectro. Uns chamam-lhe populismo, outros nacionalismo, outros ainda “nativismo”, ou iliberalismo, ou xenofobia.

Serão todos esses fenómenos expressão do mesmo espectro? Os editores da revista não se pronunciam directamente. Mas a verdade é que abrem o dossier com um artigo de Takis S. Pappas, da Universidade da Macedónia, na Grécia, em que o autor procura mostrar que não é tudo a mesma coisa. E que não é útil “meter tudo no mesmo saco”.

Pappas propõe três grandes categorias: anti-democratas, “nativistas” e populistas.

Como os nomes indicam, apenas os anti-democratas exprimem uma ameaça directa aos regimes constitucionais pluralistas. Quanto aos populistas, a sua ameaça emerge sobretudo em democracias onde os partidos centrais estão demasiado próximos e por isso não assumem posições rivais.

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No caso dos “nativistas”, Pappas argumenta que eles exprimem reivindicações que claramente são compatíveis com as democracias liberais. Basicamente, eles reclamam medidas restritivas da imigração e, nalguns casos, a adopção de “políticas industriais” restritivas do mercado livre.

Em bom rigor, estes sempre foram temas em debate nos Parlamentos nacionais das democracias mais antigas. O controlo da imigração é tradicionalmente um tema mais comum entre os conservadores; a “política industrial” é tradicionalmente um tema mais comum à esquerda. Por outras palavras, essas duas causas têm sempre feito parte da rivalidade civilizada entre partidos rivais nos Parlamentos nacionais.

Creio que o ponto fundamental consiste em recordar que a democracia liberal se funda na perpétua controvérsia entre pelo menos duas propostas rivais. Chamamos em regra “direita” e “esquerda” a essas propostas. Mas, em bom rigor, o conteúdo substantivo do que tem constituído a “direita” e a “esquerda” nas mais antigas democracias (designadamente as de língua inglesa) tem variado significativamente.

No século XIX, por exemplo, os conservadores britânicos eram sobretudo associados à crítica do comércio e do mercado livres — causas sobretudo associadas aos liberais, que eram então a “esquerda”. No século XX, com a emergência de várias matizes de socialismo, as posições inverteram-se: o comércio e o mercado livres passaram a distinguir os conservadores — que entretanto albergaram muitos liberais anti-socialistas, entre eles, em 1924, Winston Churchill — por contraste com o proteccionismo e intervencionismo estatal dos socialistas.

Em suma, o que distinguiu as democracias parlamentares (basicamente as de língua inglesa) que sobreviveram ao colapso das democracias europeias nos anos de 1920-30 não foi sobretudo a adopção desta ou daquela política substantiva particular. Foi a capacidade de absorver as disputas entre posições rivais e de as domesticar através da civilizada rivalidade parlamentar.

Por outras palavras, foram capazes de ouvir e dar expressão parlamentar aos sentimentos populares. Por isso, foram capazes de esvaziar os partidos anti-democráticos, bem como os simplesmente populistas. (Isso mesmo voltou a acontecer no Parlamento britânico na semana passada: por esmagadora maioria, os deputados votaram a favor de “respeitar o resultado do referendo” que optou pela saída da União Europeia — embora muitos deles sejam efectivamente contra essa saída).

Nesta perspectiva, é muito possível que o espectro que verdadeiramente ronda a Europa não seja o que está a ser usualmente descrito. Talvez não seja apenas o espectro do populismo e do nacionalismo. Talvez seja o espectro da radicalização mútua entre radicais inimigos das “elites” e radicais inimigos do “populismo”.

Os democratas “Burkeanos” (uns mais ao centro-direita, outros mais ao centro-esquerda) devem recusar essa “dicotomia infeliz”. E, tal como Edmund Burke no seu tempo, devem tentar promover o “equilíbrio do navio em que todos navegamos” — o da democracia constitucional pluralista, enraizada na concorrência civilizada entre propostas rivais nos Parlamentos nacionais.