Com o devido respeito que merecem o José Manuel Fernandes e o Luís Aguiar-Conraria, a sua dificuldade em encontrarem um liberal é muito fácil de explicar: têm procurado no sítio errado. Ambos procuram os liberais entre os políticos e os economistas. Não é aí que devem procurar, mas sim nas escolas de gestão. A explicação é simples: nas escolas de política trata-se do Estado. Assunto que desagrada muito aos liberais. Nas escolas de economia estuda-se o mercado, algo que muitas vezes só existe na cabeça dos economistas. O que existe mesmo são empresas, geridas por gestores, constituídas por colaboradores e dependentes de clientes. Tudo agentes individuais. Tudo isto é do domínio da gestão, e não do domínio da economia ou da política. E é precisamente por não se entender o que é gestão que o tema ‘liberdade de escolha’ aplicado ao ensino tem sido muito mal tratado. Se entendermos bem o que significa gestão verificamos que o debate sobre os contratos de associação está a ser colocado da forma errada. Isto porque a ‘liberdade de escolha’ não se aplica só do lado do cliente, mas também do lado da gestão. Isto é: não devemos privilegiar a liberdade de escolha dos pais e dos alunos, mas colocá-la em pé de igualdade com a liberdade de quem gere as escolas. E é este último ponto que na verdade desagrada à esquerda e no qual se joga o liberalismo. Passo a explicar.

Há uma aparente dificuldade em entender o que é ser um gestor. Vários exemplos. Corre por aí o boato que um indivíduo que recorra a fundos comunitários é um empresário. Nada mais falso. Receber apoios comunitários não tem mal nenhum, não é ilegal e nem sequer afronta ninguém. Mas na verdade não estamos perante um empresário. O mesmo raciocínio se aplica a um empreendedor. Caso ‘empreenda’ recorrendo a fundos comunitários não é um ‘empreendedor’, mas um ‘administrador’ de fundos comunitários. Nada mais do que isso. Os termos ‘empresário’ e ‘empreendedor’ são, infelizmente, de uso muito reservado. Pelo menos no seio das escolas de gestão e dos liberais. Outro exemplo é denominar de gestor alguém que preside ou tem assento nos órgãos de governo de uma organização estatal. A confusão aqui surge do facto de tipicamente esquecermos que a função de gestão encerra em si a liberdade do indivíduo que a exerce. Sempre que a liberdade de gestão é colocada em causa, o gestor corre o risco de se transformar num ‘caseiro’: não pode tomar as decisões que considera melhores, mas aquelas que o ‘senhor’ determina. É por isso que tipicamente as empresas públicas têm pior desempenho. Não porque sejam públicas pois é um disparate julgar que a natureza do capital determina o desempenho. Mas sim porque os que as ‘gerem’ são na verdade ‘caseiros’ do ‘senhor’ Estado. Exemplo flagrante é o caso da TAP cuja ‘gestão’ raramente seguiu a racionalidade, mas sim os desígnios previamente estabelecidos ao nível governamental e sindical. Não causa por isso estranheza o fraco desempenho.

É certo que por aí há muito liberal a exercer a função de ‘caseiro’ do Estado, a apregoar o mercado enquanto preenche a bela da candidatura a fundos comunitários e que não hesita em recorrer aos pobrezinhos para justificar a necessidade do Estado oferecer educação gratuita. E pergunta o leitor: o que tem isto a ver com o ensino e os contratos de associação? Tudo. Também aqui estamos perante várias falácias. A primeira falácia é acreditar que os estabelecimentos de ensino com contrato de associação com o estado são privados. Não são. Na verdade nem encontro na teoria da gestão algo que permita classificar esta embrulhada. O Estado financia, alguém serve de ‘caseiro’ (porque na verdade implementam o que o Estado determina), no final têm dificuldade em justificar se o desempenho é na realidade superior ao dos estabelecimentos realmente privados ou públicos e, como se não bastasse, tudo isto é apresentado como estando relacionado com a liberdade de escolha. Quando nada disto tem a ver com liberdade de escolha. O que está aqui em causa é muito simples: estas organizações, muitas delas religiosas, dependem exclusivamente do Estado para funcionar. Erro de palmatória. O mesmo erro feito por empresas que não são capazes de fazer uma simples página na internet sem financiamento Europeu.

A segunda falácia reside na tentativa de apresentar a educação como sendo algo neutro. Nunca é, nem nunca foi. Nem tem que ser. Se há algo que não existe é neutralidade num projecto pedagógico. O projecto pedagógico da Igreja não é neutro. Tal como não é neutro o do Estado. E é precisamente por isso que Igreja e Estado nunca se entenderam em relação a este assunto. A questão é tão velha quanto pelo menos Lutero. Lutero foi, como bem mostra Gerald Strauss no clássico de 1978 Luther’s House of Learning, o primeiro a ter a brilhante ideia de que para realmente converter alguém, tal teria que ser alcançado na infância e via educação formal. Logo após Lutero, Inácio de Loyola teve precisamente a mesma ideia e estruturou aquilo que se tornaria (e ainda hoje é) a maior rede ‘privada’ de ensino do mundo. A fama dos colégios Jesuítas é de sobremaneira conhecida. É também graças em boa medida aos Jesuítas que se criou o mito de que os colégios privados da Igreja são superiores aos outros (sejam eles privados ou estatais). Naturalmente a esquerda nunca gostou desta ideia. Aliás (e aqui se vê a origem do mal na educação), não é só a esquerda que não abdica de controlar a educação. Se há elemento da governação do qual o Estado não quer abdicar é a educação. E é assim há séculos. Em Portugal, é assim pelo menos desde o Marquês de Pombal. O problema é que a Igreja quer converter as crianças em Católicos, enquanto o Estado quer converter o mesmo mercado de imberbes em laicos. É por isso absolutamente ridículo que estas duas instituições se tenham um dia associado. A Igreja não aprendeu nada! E claramente os Católicos que se passeiam pela rotunda do Marquês em Lisboa nunca repararam que, na estátua que por lá está, o Estado fez questão de deixar escrito que a expulsão dos Jesuítas é um dos feitos que concedeu ao Marquês o direito a ser imortalizado!

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Permaneçamos na história, que é boa conselheira. É que os contratos de associação, ao contrário do que por aí se pensa, são algo que remonta ao século XVI. Só não tinham esse nome. O que é absolutamente extraordinário é perceber que os Jesuítas, que nunca quiseram ‘contratos de associação’ com governantes Católicos, os tenham assinado com um Estado que é laico. Inácio de Loyola fundou colégios sempre com dinheiro recebido via doações. O pormenor curioso é que quase sempre quem doava o dinheiro sugeria aos Jesuítas algumas condições. Nalguns casos sugeriam que alunos de ascendência judaica não pudessem frequentar o colégio; noutros casos queriam impôr aos Jesuítas determinados temas a inserir no currículo; no limite, e aconteceu várias vezes, a entrega do dinheiro para a fundação do colégio era condicionada pela atribuição da regência de cadeiras a determinadas pessoas. Ora resulta que Inácio de Loyola nunca quis ser caseiro de ninguém. Nunca em vida do Santo a Companhia de Jesus aceitou um contrato destes. Para Inácio de Loyola o assunto não levantava qualquer tipo de dúvida: era preferível não fundar o colégio a aceitar condições que limitassem a sua liberdade.

E é esta liberdade, esta vontade que os liberais Católicos têm em ter um projecto educativo que sirva os interesses do mercado Católico, que desagrada e choca muita gente. E sim, nem os mercados são neutros. Há mercado para os Católicos. Vamos por isso falar agora com frontalidade e com um discurso próprio de liberais. A liberdade total, que deve ser um direito inalienável dos gestores dos colégios Católicos, ao serviço dos clientes Católicos, encerra em si consequências que desagradam. Eu entendo que não gostem, mas é isso o liberalismo. Esta liberdade de escolha implica opções como por exemplo: o gestor escolhe os alunos que muito bem entender, usando os critérios que julga servem melhor o seu projecto; separa, se assim quiser, os rapazes das raparigas; contrata os professores que preferir, e todos muito Católicos se assim decidir. Sim, isto implica o que alguns apelidam de elitismo, discriminação e todas essas coisas que supostamente devem colocar o leitor com lágrimas nos olhos. Mas os liberais são na verdade uns selvagens e se houver mercado para elitistas, que seja servido! Mas há mais: o gestor tem ainda o direito inalienável de escolher os conteúdos programáticos, as unidades curriculares e de fazer os exames que muito bem entender. Isto significa que o gestor Católico pode eliminar educação sexual do currículo e substituir Saramago pela poesia de Santa Teresa de Ávila? Sim, é a selvajaria liberal no seu expoente máximo. O gestor de um colégio Católico, e liberal se assim quiser ser, recusa toda e qualquer tipo de intervenção ou regulação que venha do Estado. Aliás, nem sequer se rebaixa ao ponto de alguma vez reunir com o ministro. Porque para os liberais há dois ministérios que não devem existir: o da educação e o da economia. Em vez de reclamarem com o ministro, ignorem-no de uma vez por todas. Um colégio Católico serve o mercado Católico, presta contas aos clientes e alavanca fundos para o seu funcionamento junto do mercado Católico.

Isto é que é liberdade de escolha no ensino. E perguntam? Quem paga tudo isto? Pois, os clientes. Quem mais deveria ser? Ora é aqui que surgem, é verdade, muitas contradições entre os liberais. A contradição não resulta do facto de sermos Católicos ou de sermos subservientes à Igreja. A verdadeira origem da controvérsia está no seguinte. Caso os Colégios Católicos que estão em risco não encontrem solução no mercado (seja por via de pagamento de propinas pelos alunos, seja por via de doações de Católicos, como é tradição centenária) devem encerrar? Pois claro que devem. Antes cair do que baixar a cervical perante o Estado! E já que estamos a tentar encontrar liberais, permitam-me que diga que não sei de onde veio esta ideia peregrina de afirmar que os Liberais Católicos querem que o Estado salve os colégios geridos pela Igreja. Nada mais falso. Se o mercado Católico não quer colégios, pois que encerrem. E quanto mais depressa falirem melhor. Em linguagem própria de Liberais Católicos: se o mercado não funcionar é porque Deus assim quis. Esta indiferença, que alguns apelidam erradamente de desprezo pelos pobres, é o que choca muitos quando confrontados com o Liberalismo Católico. Aceito que não gostem. O que não aceito, desculpem a franqueza, é que venham afirmar que os Liberais Católicos alguma vez defenderam ajudas do Estado. Falo dos Liberais, os tais puros, que pelos vistos tentam encontrar… naturalmente há por aí socialistas Católicos os quais merecem todo o respeito. Nós, os Liberais Católicos, agradecemos que nos esqueçam: não criámos esta barafunda, não assinámos contratos com o Estado, nunca trabalhámos para o Ministério da Economia ou da Educação. Bem sei que nos acusam de muita coisa, mas garanto: desta vez não fomos nós nem os bancos!

Quanto à Igreja, espera-se que finalmente tenha entendido que é o Estado, e não o mercado, quem realmente mata.

Professor Universitário