Durante décadas, democracia rimou com défices orçamentais. Até ao ano 2000, o crescimento económico disfarçou os desequilíbrios orçamentais e o aumento da dívida pública em termos absolutos. No início dos anos 2000, quando chegou a maré baixa do crescimento, Portugal viu-se de “tanga”. A despesa pública, os impostos e a dívida não paravam de aumentar. Porém, foram poucos os que, à época, vislumbraram “a tanga”. Até à crise financeira internacional de 2008, a exuberância dos mercados financeiros, com o acesso fácil ao crédito, permitiu ‘gerir’ a dívida pública.

Na verdade, a Comissão Europeia foi desencadeando sucessivos Procedimentos de Défices Excessivos. Esta pressão de Bruxelas obrigou à tomada de medidas para conter o défice, e, ao mesmo tempo, levou ao uso da imaginação contabilística. Nessa altura, as críticas ao espartilho das regras europeias vinham de todos os quadrantes políticos. Poucos eram aqueles que tinham a coragem ou a lucidez de defender contas certas.

A crise financeira internacional, a política orçamental ultra expansionista de 2009 e 2010 e a crise das dívidas soberanas resultaram no aumento das taxas de juro. O acesso do Estado e do sistema bancário aos mercados financeiros internacionais foi-se tornando mais difícil. Para acalmar os investidores, seguiram-se cortes da despesa e aumentos de impostos em 2010 e 2011. Infelizmente, não bastaram para nos livrar do terceiro pedido de resgate em democracia. Está ainda muito fresca na memória de todos a crise que se seguiu, a mais severa desde a Segunda Guerra Mundial.

Desde 2014, à medida que Portugal ia saindo da crise, as vozes críticas às medidas de consolidação orçamental e de redução da dívida iam baixando de tom. As contas certas foram-se tornando um consenso nacional. Na última campanha eleitoral, até os partidos mais à esquerda fizeram questão em mostrar sentido de responsabilidade na gestão das contas públicas. Aparentemente, a irresponsabilidade orçamental deixou de dar votos.

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Em 2019, o défice orçamental será quase eliminado (0,1% do PIB) e espera-se para 2020 o primeiro excedente orçamental da democracia (0,2% do PIB).

Este marco histórico das finanças públicas é também um marco da nossa democracia. Entre o défice de 11% do PIB em 2010 e o excedente de 0,2% do PIB em 2020 foi percorrido um longo caminho das pedras: um enorme aumento de impostos, recordes sucessivamente quebrados para a carga fiscal, cortes dos salários e das pensões, os níveis mais baixos de investimento público em décadas. Estes resultados foram alcançados por um Governo de coligação (PSD + CDS) e por um Governo minoritário (PS) com o apoio de uma maioria no Parlamento (BE + PCP + Verdes). Ambos completaram os seus mandatos. A estabilidade política e a paz social são sinais do reconhecimento pelos portugueses da necessidade das políticas seguidas.

O anúncio do excedente orçamental para 2020 parece estar a abalar o consenso em torno das contas certas.

Para os partidos mais à esquerda e para os sindicatos, se o Estado dá ‘lucro’, este deve ser usado para melhorar o rendimento das famílias e os serviços públicos. É verdade que as carências no sector da saúde ou nos transportes públicos estão à vista de todos. Também não é fácil aceitar reduções reais nos rendimentos dos funcionários públicos e dos pensionistas depois de sete anos consecutivos de crescimento económico e de muitos sacrifícios.

À direita e entre as associações empresariais também parece existir algum desconforto com a perspectiva do excedente orçamental. Pode haver aqui alguma inveja ao ver o PS apropriar-se do elemento central do seu programa político das últimas duas décadas. A direita fica, assim, com o seu espaço político reduzido. Vê-se obrigada a ser mais criativa nas suas propostas para o país e a reinventar-se. Os partidos da direita têm proposto a utilização do excedente orçamental para reduzir os impostos. A elevada carga fiscal justifica plenamente os apelos à redução de impostos.

Num país que cumprisse ou estivesse próximo de cumprir os objectivos europeus para a dívida pública, esta discussão sobre a melhor aplicação do excedente orçamental faria todo o sentido. Todavia, é mais difícil de perceber num país que tem uma das dívidas públicas mais elevadas da UE (só a Grécia e a Itália nos ultrapassam). Uma dívida pública de 120% do PIB (a que se soma o elevado endividamento das empresas e das famílias) expõe a economia portuguesa a enormes riscos.

Convém relembrar que, entre 2011 e 2017, durante seis anos, a dívida pública portuguesa esteve classificada como ‘lixo’ pelas principais agências de rating. Num cenário moderadamente optimista, serão ainda necessários cerca de 20 anos para que a dívida pública atinja os 60% do PIB previstos no Tratado Orçamental Europeu (crescimento médio anual do PIB em torno dos 2%, taxa de inflação média anual de 2% e orçamentos equilibrados).

Nos últimos 20 anos, depois de muitas indecisões e de uma gravíssima crise económica e financeira, a sociedade portuguesa convergiu para um consenso sobre a importância de eliminar o défice orçamental e reduzir a dívida pública. Os sacrifícios foram grandes. Muitos emigraram. Os que continuaram a trabalhar em Portugal sentir-se-ão defraudados se nos próximos 20 anos não tivermos resolvido o problema da dívida. Se falharmos agora, o futuro será sombrio: os impostos continuarão a aumentar, a remuneração dos funcionários públicos e dos pensionistas a diminuir e os serviços públicos a deteriorarem-se. E os portugueses continuarão a emigrar.

Vamos por isso acabar o trabalho que começámos. E um excedente orçamental é um grande passo nesse sentido.