No dia 19, o Observador fez seis anos. No dia anterior, muito apropriadamente o Dia Mundial dos Museus, tinha eu feito sessenta. Sempre gostei desta quase coincidência de aniversários, embora por estes dias tenha muito mais confiança no Observador do que em mim. O Observador, com os seus leitores, pode crescer: a mim, só me resta envelhecer. Sessenta anos, meu Deus! Como toda a gente, e apesar de uma abundância aterradora de provas empíricas, não acredito. Um escritor que me impressionou muito na juventude dizia que é preciso acreditar que sim, mas saber que não. Eu estou exactamente ao contrário: sei que sim, mas não acredito. Se calhar não é exactamente o contrário. A ver.

Deve ser por causa deste estado mental que a política portuguesa, com a qual, por lamentável falta de imaginação própria para a coisa, mantenho uma relação puramente reactiva, me parece, mesmo antes da crise do coronavírus, uma entidade informe em que tudo se confunde. Para adoptar os termos de uma escola de psicologia, não há boas formas que capturem a nossa atenção, formas pregnantes. Não há distinção entre a figura e o fundo. Tudo aparece a boiar numa sopa turva. Aqui e ali aparecem formas arcaicas, como André Ventura, que me preocupa muito menos do que as causas que o produzem e que são justamente as múltiplas variações da generalizada informidade. PS e PSD quase se confundem por inteiro. Costa apoia Marcelo, Rio apoia Costa. Apoiam-se uns nos outros. Como pode uma pessoa orientar-se assim? As más formas desorientam. A orientação supõe oposições, supõe formas vivas, e não arcaicas, que se distingam umas das outras. À falta disso, as eleições, por exemplo, tornam-se uma realidade estranha, tanto as presidenciais como as legislativas. Tudo é informe.

Informe e viscoso. Foi Sartre quem, n’O Ser e o Nada, deu, por assim dizer, ossatura teórica ao conceito de viscosidade, uma maneira de ser do espírito que possui um perfeito análogo na experiência sensível. “Um aperto de mão é viscoso, um sorriso é viscoso, um pensamento ou um sentimento podem ser viscosos.” O viscoso encontra-se, desde a sua origem, “contaminado de psíquico”. “Esta instabilidade imóvel do viscoso desencoraja a posse.” É a docilidade do viscoso, “a moleza levada à sua extrema consequência”, como uma ventosa, que nos possui. A “política dos afectos” é viscosa. A aderência do PSD ao PS, sob a capa da civilidade, é viscosa. O sorriso político de Costa é viscoso até mais não. A cena da “Auto-Europa” foi o espectáculo da viscosidade no seu máximo esplendor. Tudo é viscoso, tudo “desencoraja a posse” de um projecto político que nos possa guiar com algum sentido. No reino da viscosidade, que é também o reino das más formas, não há lugar para a busca, sempre precária, do sentido da sociedade. A viscosidade destrói todo e qualquer sentido.

Em contrapartida, a viscosidade favorece a corrupção e o compadrio e fornece o assento para uma prepotência política tão mais eficaz quanto esmeradamente ocultada pela comunicação social. Ontem, na Rádio Observador, Miguel Pinheiro, a propósito das declarações no Parlamento do ministro Pedro Nuno Santos a respeito de José Miguel Júdice, José Manuel Fernandes, que falava da perversidade e, como resultado, da discriminação nos subsídios à comunicação social anunciados pelo governo, e, anteontem, Alberto Gonçalves, sobre a suspensão do programa de Ana Leal pela TVI, deram três bons exemplos dessa prepotência. Há obviamente um padrão comum nestes três casos. O PS, cada vez mais um partido-Estado, aproveita a informidade ambiente para ir, pouco a pouco, anulando as limitações ao seu poder. Inclusive face àqueles que, no seu seio, oferecem o perigo da dúvida sobre intenções e métodos.

Como diz um provérbio inglês, que a Alice de Lewis Carroll, referindo-se ao Gato de Cheshire, repete ao Rei de Copas, “um gato pode olhar para um rei”. Quer dizer: há certos privilégios que os súbditos têm na presença dos governantes. “Então tem de ser removido”, disse decididamente o Rei; e dirigiu-se à Rainha, que passava por ali na altura, “Minha querida! Gostava que fizesses remover este gato!”. A Rainha tinha apenas uma maneira de resolver todas as dificuldades, grandes ou pequenas. “Cortem-lhe a cabeça!”, disse, sem sequer olhar à sua volta.” Isto diz-vos alguma coisa?

Ah, é verdade: na história não conseguiram cortar a cabeça ao gato. O Gato de Cheshire apareceu aos olhos de todos apenas com a sua cabeça e o seu quase autónomo sorriso, o que provocou uma discussão metafísica entre o Rei, a Rainha e o carrasco, o Valete de Paus, sobre a possibilidade de cortar uma cabeça que se encontrava separada do corpo. Viva o Gato de Cheshire!

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