O normal seria no artigo de hoje aprofundar o que escrevi sobre a proposta de Orçamento do Estado. Em especial, olhar com atenção para a situação dos trabalhadores independentes (sejam eles verdadeiros ou falsos recibos verdes), potencialmente os principais prejudicados com o projecto que está em cima da mesa. Mas, tal como aconteceu há uns meses, e pelas mesmíssimas razões, não dá. Terá de ficar para uma futura semana.

O desatino é tanto que não sei por onde pegar. Mas, começando por cima, não há como não ver que os nossos governantes se comportaram como umas baratas tontas. Nos momentos em que o país precisava de uma liderança forte e serena, vemos um primeiro-ministro, uma ministra e um secretário de Estado totalmente incapazes de lidar com o stress do momento.

É difícil fazer um ranking das declarações mais descabidas, delirantes e até ofensivas. O mais indigno terá sido a conferência de imprensa convocada por António Costa para nos dizer que tinha convocado um Conselho de Ministros. As mais perigosas foram as do secretário de Estado Jorge Gomes. No meio de um inferno em curso, dizer que «têm de ser as próprias comunidades a ser proactivas» e não ficarem «à espera que apareçam os bombeiros e aviões para resolver os problemas» fazendo um apelo à «auto-protecção» é de uma leviandade difícil de racionalizar. No futuro, quando a Protecção Civil quiser evacuar habitações, arriscam-se a que os habitantes se lembrem das palavras de ordem do governo: auto-protejam-se! O que vamos ter a seguir? O Governo a promover as milícias populares contra os criminosos? Também é auto-protecção, ou não? Nem inventado!

Ao mesmo tempo, em Espanha, o governo apelava a que ninguém actuasse por sua conta e pedia que as pessoas seguissem as instruções dos vários serviços de protecção civil.

Bastariam as declarações – apenas e só as declarações, nada mais – da ministra Constança Urbano de Sousa e do seu secretário de Estado para serem demitidos sem apelo nem agravo. Não por serem más pessoas, não por serem incompetentes, não por terem falhado. Simplesmente porque quem não consegue manter a cabeça fria numa situação quente não pode estar à frente do Ministério da Administração Interna. É destas pessoas que esperamos liderança caso haja uma revolta das polícias, um atentado terrorista, um terramoto de grande magnitude ou um incêndio de grandes proporções.

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Cara ministra e caro secretário de Estado, acredito que fizestes o vosso melhor. Tal como acredito que, com excepção das famílias directamente afectadas por estas tragédias, a ministra seja a pessoa que mais sofreu. Mas não chega. São necessárias qualidades de liderança que vós, visivelmente, não tendes. Repito o que escrevi: sinceramente, fizestes o vosso melhor, daí que não haja esperança. Ide de férias.

Mas a verdade é que os indícios de incompetência vão muito além da falta de cabeça fria. As falhas gritantes são mais do que muitas. Um aspecto que é notório em muitos dos relatos é a total sensação de abandono, cada um por si. Até parece que as palavras do Secretário de Estado eram mesmo para ser interpretadas literalmente. O país estava a arder no Domingo e só quem fez viagens longas (por exemplo entre a Figueira da Foz e Braga) se apercebeu do que estava a acontecer: tudo a arder. Mas, enquanto se viajava de carro, o rádio ligado apenas passava música. Só mesmo muito à noite é que as redacções se começaram a aperceber. O que isto quer dizer é muito simples: a Protecção Civil estava completamente à nora, sem passar informação nenhuma. As populações não foram avisadas, não houve meios de socorro, não houve comunicações sobre vias de fuga, não houve nada. Entregues a nós próprios perante uma tragédia infernal. É a auto-protecção.

Por exemplo, em Braga, falei com alguns colegas sobre se deviam abandonar a sua casa e vir para a minha, que parecia a salvo. Responderam-me que o fogo estava longe, pelo que não era necessário. Foi só no dia seguinte que se aperceberam que relativamente perto de suas casas algumas das estradas haviam sido cortadas. Na verdade, a hipótese de terem ficado cercados pelo fogo tinha sido bastante real e deviam mesmo ter abandonado a sua casa. Mas não houve um aviso, um alerta, nada. O mesmo aconteceu com os pais de uma amiga, que só de manhã se aperceberam de que o fogo tinha dado a volta e cercado a sua aldeia, perto de Ericeira. Muito facilmente a tragédia podia ter sido maior. Se calhar, bastava não ter começado a chover às 3h da manhã.

Durante meses, esperámos pelo relatório da Comissão Independente sobre a tragédia de Pedrógão. Não tenho competências técnicas para o avaliar, mas é evidente a imagem de profissionalismo, de competência e de liberdade que o relatório transmite. Não há nenhum motivo para não ser levado muito a sério. E se é verdade que há muitas falhas que vêm de trás e que há recomendações que exigem debate e anos para serem aplicadas, também é verdade que há falhas apontadas que exigem responsabilidades políticas de um governo que já vai a meio do mandato.

São feitas várias críticas à descoordenação na cúpula da Protecção Civil, que mais se parece ter tornado num coito dos jobs for the boys. Se um governo que muda radicalmente as chefias não se responsabiliza pelas gritantes falhas de coordenação na linha de comando, então responsabiliza-se por quê? Que palhaçada é esta? Não têm vergonha?

Este ano morreram mais de cem devido a fogos. Mas, por extraordinário que pareça, morreram fora da época oficial de incêndios. Ao ler o relatório, fiquei a saber que a fase Charlie (aquela em que mais meios estão mobilizados para o combate aos incêndios e para a protecção das populações) vai de 1 de Julho a 30 de Setembro. Ou seja, os 65 mortos de Pedrógão e os 41 mortos desta semana foram fora deste período.

E se é possível argumentar que no grande incêndio de Junho as autoridades foram apanhadas de surpresa, como explicar que 4 meses depois não se tenham reorganizado e definido procedimentos de emergência que evitassem que ficássemos dependentes do desenrascanço? Como explicar que, perante um Outono que parece Verão, se tenham desmobilizado meios? Se desde 6ª feira se sabia que o risco era máximo, muito por causa dos ventos secos gerados pelo furacão Ofélia, como explicar que no Domingo fossemos assim apanhados de surpresa?

Há muitas teorias sobre quais devem ser os papéis do Estado. Deve o Estado assegurar todos os níveis de educação, deve o Estado ter grandes empresas públicas em sectores estratégicos, deve o Estado promover uma velhice activa, deve o Estado assegurar internet para todos, deve o Estado ter um banco público, deve o Estado ser mais ou menos interventivo numa miríade de coisas? Mas as milhentas teorias sobre o papel do Estado, que divergem em outros tantos assuntos, concordam que é função do Estado garantir a segurança dos seus cidadãos. Um Estado que deixa 65+41 pessoas morrerem nos incêndios é um Estado que falha na mais básica das suas funções. É um Estado falhado.

Post Scriptum: Parece-me justo dizer que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, esteve à altura das circunstâncias. Quer nas palavras que dirigiu ao país, quer no pedido de desculpas, quer nas exigências que fez. Se o primeiro-ministro se demite das suas funções, resta-nos o Presidente. E se não compete ao Presidente da República demitir ministros, esteve sempre implícito que demitir governos faz parte das suas competências.