1. Desde os tempos gloriosos do engenheiro José Sócrates em São Bento que não víamos uma ação de propaganda tão bem programada e executada. Foram mais de 20 membros do Governo. Todos devidamente equipados com luvas, óculos e roçadoras e uma narrativa de responsabilização dos cidadãos pela limpeza dos terrenos rústicos para melhorar a eficiência nos combate aos fogos florestais. Até o primeiro-ministro fez questão de vestir a sua habitual parka quadriculada multi-funções e meter mãos à obra durante 6 minutos e 47 segundos. A propaganda, contudo, é como a mentira: tem sempre perna curta.

No caso de António Costa, a propaganda deste fim-de-semana pretende apagar aquela que, juntamente com os melhores números do crescimento económico dos últimos 15 anos, constituirá a grande marca do seu Governo: os 115 mortos que resultaram do falhanço e da incompetência no combate aos fogos florestais de 2017 — e que jamais serão apagados do curriculum político do próprio Costa.

E não serão eliminados devido à sua responsabilidade política enquanto chefe do Governo que não conseguiu assegurar a segurança das populações — como os dois relatórios da Comissão Técnica Independente às tragédias de Pedrógão Grande e dos incêndios de outubro bem demonstram. Mas também devido ao que podia ter feito enquanto ministro de Estado e da Administração Interna de António Costa entre 2005 e 2007.

Numa pequena homenagem à “informação de péssima qualidade” que o primeiro-ministro diz que marca a comunicação social — e que qualquer jornalista deve tomar como um elogio, porque vem de um político claramente incomodado com o escrutínio dos media –, é importante não esquecer que foi António Costa quem adjudicou o concurso do SIRESP — a parceria público-privada para a criação de uma rede de telecomunicações que o próprio Costa acusa agora de não funcionar –, como foi igualmente o responsável pela compra em 2006 de seis inúteis helicópteros Kamov por 42 milhões de euros. Não só o negócio foi arrasado pelo Tribunal de Contas, como em janeiro estavam todas as aeronaves estavam paradas. Nada muito surpreendente face ao enorme ‘prestígio’ que é reconhecido, como todos sabemos, à indústria aeronáutica russa.

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Nem vale a pena falar naquele que, segundo o seu próprio secretário de Estado da Administração Interna, foi um “erro grave”: investir no combate aos fogos, em vez de dar a devida “prioridade” à prevenção florestal.

2. Mas o pior, bastante pior e muito grave, de facto, foi o que aconteceu entre junho e outubro de 2017 nos fatídicos fogos de Pedrógão Grande e do centro do país — e que demonstra o calibre político do habilidoso e florentino António Costa. Fez de Constança Urbano de Sousa uma espécie de escudo de proteção da responsabilidade política que levava os media a focarem-se na então titular da Administração Interna, ao mesmo tempo que jurava que nunca a demitiria — isso seria “um pouco infantil”, disse. Face às dúvidas sobre o número de mortos, chegou a pedir à população que informasse a Polícia Judiciária e o Instituto de Medicinal Legal sobre corpos que fossem encontrados — como se tal não fosse obrigação do Estado. E tentou explicar de forma determinista o número de mortos com o azar do downsburst, do furacão Ophelia e de outros caprichos da natureza.

Hoje sabemos, ao ler os dois relatórios da Comissão Técnica Independente, que o está em causa não é só a postura de António Costa e a incompetência do Governo para combater o flagelo dos fogos florestais que causaram a morte de 115 pessoas. Mas também os dois pesos e duas medidas do PCP e do BE. Ficaram (e continuam) calados perante os erros tremendos do Governo quando, noutras ocasiões, muito provavelmente já teriam organizado manifs nas ruas das principais cidades.

Veja-se, por exemplo, o actual estado do planeamento para a nova época de fogos florestais. Apesar das ações de propaganda criativas, o cenário não é nada promissor, segundo o Expresso:

  • falta publicar a nova lei orgânica da Proteção Civil que vai implementar uma nova forma de organização;
  • os bombeiros queixam-se de que não são tidos nem achados no planeamento de combate aos fogos do verão;
  • ainda não há os 40 meios aéreos adjudicados para o verão nem a Força Aérea vai coordenar as operações — veremos se participa na vigilância preventiva que é recomendado pelos peritos;
  • apesar do Plano Nacional de Gestão Integrada os Fogos Rurais estar previsto até ao de 30 de abril, as diversas entidades operacionais no terreno ainda não elaboraram as diretivas operacionais específicas;

Uma das questões mais positivas das medidas tomadas pelo Governo é o reforço de meios em termos de sapadores floreais (392 equipas, sendo 100 novas), guardas florestais (mais 200), vigilantes da natureza (mais 55) e mais 500 elementos para os Grupos Intervenção Rápida (GIRP) da GNR. Contudo, e tendo em conta que o curso apenas acaba a 15 de maio, há dúvidas sobre o grau de aprontamento dos novos GIRP, assegura o Expresso.

Sem esse silêncio cúmplice dos comunistas e dos bloquistas, e face à única voz da oposição se chamar CDS (estando o PSD em hibernação sine die), provavelmente este cenário nada promissor já teria sido denunciado com maior eficácia.

4. É por esta e por outras que este Governo é um bom exemplo de um Governo oportunista. Porque aproveita as políticas difíceis implementadas pelos seus antecessores para recolher os louros que não lhe pertencem. Porque gere o investimento público consoante as clientelas eleitorais que pretende atingir, numa lógica de navegação à vista. E porque evita fazer qualquer reforma que possa não só promover o descontentamento da sua base eleitoral de apoio, como preparar minimamente o país para o futuro.

Só um Presidente da República forte poderá cumprir o papel de escrutinar devidamente no verão que se avizinha um Governo como este. Depois do erro inicial que cometeu no caso de Pedrógão Grande ao alinhar na narrativa de que tudo tinha sido feito, Marcelo Rebelo de Sousa saiu reforçado em outubro ao censurar com palavras duríssimas o trabalho do Governo, interpretando corretamente o sentimento de vergonha e perplexidade da comunidade perante o determinismo arrogante de António Costa.

Descolado que está aos olhos da opinião pública de uma excessiva proximidade com o Executivo, Marcelo Rebelo de Sousa está em boa posição para exercer “todos os seus poderes”  e para “garantir que onde existiu ou existe fragilidade ela terá de deixar de existir”. Removida que está a ministra Constança Urbano de Sousa (a destinatária daquelas palavras em outubro), o próximo elo de responsabilidade política começa e acaba em São Bento.

Esperemos que não seja necessário ir tão longe — significaria a boa notícia de que não teríamos tido uma terceira tragédia.