Quando Miguel Pinheiro me solicitou que escrevesse para o Observador uma opinião curta sobre os resultados das presidenciais repeti o que tenho dito: Marcelo vai, no segundo mandato, ser forçado a fazer e desfazer governos. Fá-lo-á baseado nos 60% dos votos expressos e também porque lida com um Parlamento dividido e um primeiro-ministro (António Costa) desgastado. Não pretendo aqui fazer de adivinho, mas a política implica que se esgotem as variantes possíveis e uma delas é a saída de Costa no Verão. Os três “fins”, o da pandemia, o da presidência portuguesa do Conselho da UE, a que se associa o das moratórias, poderão ditar o final de Costa. É com base neste pressuposto que as linhas que se seguem devem ser lidas.

Uma semana após a reeleição de Marcelo Rebelo de Sousa surgiram dois artigos na imprensa a  pedir que o Presidente substitua o actual Governo por outro de iniciativa presidencial. O primeiro foi  de Miguel Sousa Tavares, no Expresso; o segundo de Manuel Villaverde Cabral, no Observador.  Os dois colunistas aludem, sem referirem explicitamente, à possibilidade do Presidente accionar o disposto no n.º 2 do artigo 195.º da Constituição. O precedente seria gravíssimo pois, no entender tanto de Sousa Tavares como de Villaverde Cabral, à demissão do Primeiro-Ministro não se seguiria a convocação de eleições mas um governo de iniciativa presidencial. No entanto, apesar de grave, a hipótese tem condições para se concretizar, razão pela qual alerto para o seu perigo. A possibilidade mais provável implicaria a saída de António Costa, que poderia ser coordenada com Marcelo, seguida da nomeação de outro chefe de Governo, escolhido pelo Presidente e com o apoio de uma maioria parlamentar (do PS com o BE ou do PS com o PSD).

Além de um profundo golpe no equilíbrio institucional conseguido por Sá Carneiro (e comummente aceite com a revisão constitucional de 1982), a nomeação de um Governo de iniciativa presidencial teria como resultado a fractura do PS. Se um acordo do PS com a extrema-esquerda hostilizaria a corrente mais moderada dos socialistas, um entendimento do PS com o PSD ameaçaria a ambição política de dirigentes como Pedro Nuno Santos. Dificilmente a facção deste ministro aceitará um bloco central. Não sei se no Largo do Rato já se ponderou esta possibilidade. O artigo de Pedro Nuno Santos, há dias no Público, leva-me a crer que sim.

Um PS partido ao meio; um PSD eleitoralmente acossado pelo Chega e pela IL; um CDS moribundo; um PCP a perder o Alentejo para o Chega e um BE a vender caro um acordo cuja não concretização o libertaria de qualquer responsabilidade. Em cima do bolo, a cereja que seria Marcelo, sozinho em Belém, a juntar as peças. O cenário está montado. Um pequeno passo em falso ditará o início do circo.

Resta desejar que Marcelo Rebelo de Sousa, que tenho criticado duramente neste espaço, esteja consciente do risco e aja com cautela. A divisão do PS, a par do enfraquecimento do PSD, dificultaria a formação de novos governos enquanto aqueles dois partidos não fossem substituídos ou recuperassem o seu eleitorado. Julgo que Marcelo é ambicioso, mas não ao ponto de destruir os poucos equilíbrios que ainda restam apenas para que a governação dele dependa durante os próximos cinco anos. Aos que contam com um Marcelo forte é bom que se lembrem que depois de Marcelo virá outro. Quem? Pois. O problema é precisamente esse.

No Expresso deste fim-de-semana, Clara Ferreira Alves alude aos 50 anos do 25 de Abril, que terão lugar em 2024. Ferreira Alves acredita que a democracia não morrerá nas mãos de Marcelo. Até pode ser que sim. Mas não é difícil imaginar o evento a decorrer na Assembleia da República: um velho presidente astuto e sagaz, mas só. Discursos a exaltar feitos que ninguém viu e a ignorar perigos que qualquer um pressente. Aplausos, muitos. Cá fora, pobreza. Daquela que não se menciona porque se impõe sorrateiramente. Entretanto, o nosso olhar estará posto na Alemanha. Como ontem e como hoje a nossa salvação; a nossa sina. Não obstante, continuamos. O milagre português é esse. Continuar.

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