Venho do funeral do Augusto Cid, português de enorme dimensão, um artista notável, amigo de eleição. Antes, ao princípio da manhã deste sábado, fora a missa de corpo presente na Basílica da Estrela, presidida pelo Padre António Vaz Pinto. Estava muita gente, mas não tanta quanto devia, não tanta quanto ele merece.

Não sei se o Augusto Cid ainda seria militante do PSD, mas não lhe é conhecida qualquer defecção. É sabido que foi ele quem desenhou o símbolo das três setas para o PPD, o Partido Popular Democrático. Não estava ninguém pelo PSD. Não estava ninguém pelo CDS. Ninguém dos partidos da AD, a Aliança Democrática, a cujo espírito dedicou boa parte dos esforços e sacrifícios da sua vida. O jornal i, na sexta-feira, titulava: “Morreu o cartoonista de que Mário Soares era fã.” É verdade – há histórias engraçadíssimas dessa relação. Não estava ninguém do PS. E, o que é inteiramente natural, não estava ninguém do PCP, nem do BE. Não esteve a comunicação social, mas Augusto Cid teve destaque nas páginas que vários jornais dedicaram à sua evocação. São incontáveis os cartoons que, com o seu olhar bem-humorado e traço certeiro, semeou em várias colaborações: “Povo Livre”, “A Mosca”, “Diário de Lisboa”, “O Século”, “Vida Mundial”, “Jornal Novo”, “A Tarde”, “O Dia”, “Observador”, “O Diabo”, “Semanário”, “O Independente”, “Focus”, “Grande Reportagem”, “Sol” e na TVI, aqui no período em que fui Director de Informação. Em certo sentido, as ausências são naturais. Augusto Cid não era, nunca foi, um homem do poder, um homem dos poderes. Foi um cidadão livre, leal, independente, vertical. Também não estava na Basílica ninguém do BES ou do Novo Banco, fosse o bom, o mau ou o péssimo, nem sinal de quaisquer outras entidades quejandas. Um homem livre, na verdade. Certamente em paz.

Estava o Alexandre Patrício Gouveia, o General Rocha Vieira, o Júlio Castro Caldas, o Paulo Sande, o Roque da Cunha Ferreira, o Nuno Van Uden, o José Luís Ramos, o Nuno Rogeiro, o Pedro Roseta, o oficial da Casa Militar em representação do Presidente da República. Na véspera à noite, tinha estado pessoalmente o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Veio de propósito do Porto, onde todo o dia o ocupara, e teve de voltar ao centro-norte para obrigações no dia seguinte. A sua presença, ao lado das filhas do Augusto Cid, fez o que lhe tem sido tão frequente em tantas ocasiões por tanto lado: Marcelo esteve por todos, esteve com os que estão e esteve pelos que faltam. Estiveram também a Virgínia Estorninho, o António Homem Cardoso e o Ricardo Sá Fernandes. Nas coroas de flores, com as homenagens da praxe, destacavam-se as da Junta de Freguesia de Belém, do Grupo Municipal do PSD em Lisboa, do Presidente da Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, do Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, do Primeiro-Ministro, da Presidência da República. São sinais que pontuam a amplitude e a dimensão da sua vida. Mas merece mais.

Conheci o Augusto Cid em 1981. Admirava-o como cartoonista, tinha os seus três primeiros livros: o primeiro, ainda anterior ao 25 de Abril, sobre a guerra em África; os outros dois, sobre o PREC. Andávamos inquietos com os inquéritos oficiais sobre o caso Camarate, que não batiam certo. Sendo conhecida a investigação própria que desenvolvia, com o jornal “O Diabo”, quis conhecê-lo, saber mais do que descobrira e avaliar se era um esforço sério, genuinamente preocupado com a verdade ou, como o acusavam, um daqueles vendavais sensacionalistas que tendem a aparecer nestes casos. Verifiquei que não só era um trabalho sério, como seriíssimo, exigente, rigoroso. Colaborámos muito em todos os anos seguintes. E ficámos amigos para sempre. Além dos talentos que tinha, o Augusto Cid era uma personalidade apaixonante de rectidão, disponibilidade, humildade, sentido de humor. Um companheirão.

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O caso Camarate não teria sido aquilo que foi – conduzido ao ponto de podermos já conhecer quase toda a verdade – se não fosse o Augusto Cid, o seu inconformismo, a sua dedicação, a sua inteligência. Os milhares de horas que gastou, os dias, e as noites também, a estudar, a escutar, a buscar a verdade, a entendê-la, a testá-la, a avaliá-la criticamente, a confrontá-la, a defendê-la, são trechos inumeráveis de tempo na sua vida.

Foi ele (no princípio, com o Nuno Rogeiro e, nos primeiros anos, com a tenacidade e a firmeza da Malé Vaz Pires, a sogra do Adelino Amaro da Costa), que foi o guardião do fio da meada e, muitas vezes, perante o novelo de um acidente fabricado pela burocracia, o descobridor das pontas soltas. Sem esse trabalho do Augusto Cid, logo desde as primeiras semanas, e a persistência que manteve ao longo de quase 40 anos, nunca teríamos chegado perto da verdade: teríamos possivelmente verificado que não tinha sido “aquele acidente”; mas já não teríamos elementos, nem saber para estabelecer o que havia sido, então. O juntar de peças que lhe ficamos a dever nos avanços da prova é extraordinário.

Do conhecimento que adquiriu, acumulou e consolidou da totalidade do processo, dos seus diferentes ângulos e múltiplos passos, teve intuições brilhantes que permitiram avançar. Como sabia tudo ou quase tudo do caso, jogava com o baralho todo. É possível que possa ter sido injusto nalguns juízos ou hipóteses que formulou, nas dezenas que houve que fazer no curso da investigação. Quem o não seria, em iguais circunstâncias? Quem o não faria, quando se procura? Quem o não faria, quando as entidades responsáveis pela investigação técnica e criminal, em lugar de cooperarem e também caminharem, cristalizaram-se na mentira oficial e foram sempre os principais obstructores à descoberta e ao estabelecimento da verdade? Nunca encontraremos forma de pagar ao Augusto Cid essas horas, dias e noites sem conta. O melhor é dizermos “Obrigado”. Mesmo.

Quando o conheci, na segunda metade de 1981, já o Augusto Cid não desconfiava apenas de que tivesse havido atentado; ele sabia que tinha sido atentado. A razão da certeza vinha dos elementos que directamente colhera e, sobretudo, de ouvir os testemunhos qualificados de quem vira. Destaco o Chefe Costa e o Inspector Pedro Amaral e outros agentes da Polícia Judiciária. O primeiro, chefe da segurança pessoal de Sá Carneiro, pôde seguir com o olhar, por um acaso fortuito, toda a rolagem final do Cessna e a descolagem, observando claramente uma pequena deflagração e o início de um incêndio a bordo, antes do embate em Camarate na linha do horizonte. O segundo, chefiara a equipa da Polícia Judiciária que andou a recolher indícios nas imediações do sinistro. É sobretudo no dia seguinte, 5 de Dezembro, já à luz do dia, que os agentes recolheram aquilo que ficou conhecido como “o rasto”: um conjunto variado de detritos e pequenos fragmentos – papéis e pedaços de papel, bocados de fibra de vidro, outros materiais, alguns chamuscados ou queimados – que foram encontrados no solo entre o topo da pista 18/36, de onde Cessna descolara, e o local onde o avião embatera em Camarate. O rasto gerou imensa polémica: de um lado, estes homens da PJ sustentavam que era um rasto de materiais largados pelo avião, no seu percurso de queda; do outro, a comissão técnica da DGAC sustentava que não e que esses materiais se tinham depositado no solo, depois de projectados no ar pelo grande incêndio final do avião, como numa fogueira, obedecendo à acção do vento. A hierarquia da Judiciária resolveu o diferendo, afastando do processo o Inspector Pedro Amaral e a sua equipa… Sobrou, porém, o relatório do Inspector e outros registos do achado – o que, anos passados, muito ajudaria a que a verdade acabasse por vir ao de cima.

A inquietação de Augusto Cid, maior do que de qualquer outro de nós, vinha de ter contactado directamente a verdade. Nós também o sabíamos, porque ele nos disse ou porque lemos. Mas o Augusto Cid ouvira-o directamente de quem vira o avião cair e de quem levantara do solo, ao longo de todo o percurso de queda, o rasto inequívoco da sabotagem. O Laboratório de Polícia Científica, analisando os fragmentos, confirmou a procedência do interior do Cessna, alguns (folhas queimadas do Manual) saídos do cockpit. Se ao longo de cerca de 800 metros, numa faixa relativamente uniforme, se recolheram resíduos procedentes de dentro da aeronave, era porque o Cessna tinha um buraco; se tinha um buraco, era porque algo abrira esse buraco na fuselagem exterior e no corpo interior do avião; e, se muitos dos fragmentos estavam queimados, era porque o avião trazia um incêndio a bordo. Estava aí registado o essencial de um atentado com um engenho explosivo localizado, apto a provocar uma pequena deflagração e a simular um acidente à descolagem.

Tudo isto se provou mais tarde, após mais algumas cenas rocambolescas. Mas tinham já passado seis anos. Mesmo assim, ainda custou mais algum tempo para remover preconceitos políticos. E os preconceitos judiciários nunca foram removidos. Funcionou a melhor lógica corporativa: uma vez errado, errado para toda a vida, errado até à eternidade.

A inquietação do Augusto Cid não era angústia, nem ansiedade. Foi sempre pessoa de impressionante serenidade, mesmo nas provas mais difíceis e nos riscos que correu. E, apesar do inconformismo diante de autoridades que víamos deixarem fugir a culpa e os culpados, nunca o vi perder a calma, a frieza e o sangue-frio. A inquietação dele era porque, graças ao seu trabalho de investigação, ele conheceu, de viva voz, quase desde o princípio, a verdade do que acontecera. Ele não sabia só a verdade; ele tocara-a. E não mais pôde ficar quieto até que outros a tocassem também e a verdade, enfim, prevalecesse.

O caso de Camarate vivido pelo Augusto Cid é uma extraordinária metáfora da grandeza e da generosidade de um ser humano.

Além disso, ele era um artista de qualidade superior. Certamente nunca pensara ser detective, nem estudar aeronáutica ou outros saberes e ciências. Não conheço todas as suas artes, mas admirei-o como um cartoonista de excepção. Pelos seus cartoons, temos a história política contemporânea de Portugal – e muito mais ainda. Poderia haver um Museu Augusto Cid. E, se houver um Museu do Cartoon, terá de ter uma Sala Augusto Cid. Admirei-o ainda como aguarelista, que é o género da minha predilecção. E admirei-o como escultor, destacando os seus cavalos e o belíssimo monumento no Restelo, em Lisboa, ao Condestável D. Nuno Álvares Pereira, S. Nuno de Santa Maria. A estátua mostra o talento do escultor e a singularidade do seu olhar. Eu nunca vira uma imagem assim do Condestável que nos defendeu a independência na crise nacional de 1383-85. Mas é esta imagem esculpida em bronze pelo Augusto Cid que gravei no espírito e me vai ficar: de joelhos, levantando, em oferta, a espada para o céu.

Se calhar, foi fácil ao Augusto Cid imaginar assim S. Nuno de Santa Maria. Ele, em certa medida, também foi um condestável. Foi certamente um herói civil. Não tinha espada, nem pistola, nem punhal. A única arma que esgrimia era o lápis ou a caneta de tinta da China. De mãos nuas, teve a coragem e a persistência dos heróis, a serenidade e a fortaleza diante dos desafios, a rectidão de propósito, a determinação de chegar à meta. Lidou com muitos factos dolorosos, mas nunca perdeu o sentido de humor e o sorriso. Foi verdadeiramente infatigável. Agora, foi descansar. Merece. Felizes foram todos os que puderam ser seus amigos. Grande exemplo guardam as suas filhas e os seus netos.

Lisboa, 16 de Março de 2019