É preciso aprender a ver longe. Porque de uma coisa podemos estar certos: passada, graças à vacina e a outros processos que a medicina vá inventando, a grande fase do confinamento que a todos nos isola de todos, um outro flagelo tomará conta de nós, um outro e já nosso conhecido espectro assolará a Europa e em especial este nosso querido Portugal. Refiro-me ao retorno do turismo de massas, com a sua corte de pequenas catástrofes: a gentrificação, a descaracterização das cidades, a perda de identidade das colectividades, e por aí adiante. Enfim, tudo aquilo que, ainda no ano passado – lembram-se? –, provocava um horror imoderado em grupos de cidadãos que, por todos os processos possíveis, se organizavam para contrariar esse sinistro avatar do neoliberalismo selvagem e que, com a oportuna excepção concedida a si mesmos, subscreveriam de bom grado os propósitos célebres do filósofo Martin Heidegger, segundo o qual o turismo deveria ser proibido (com a eventual excepção dessa forma de turismo que um seu herói de uns anos antes abundantemente praticava: o turismo a passo de ganso).

É urgente, portanto, ir reflectindo em novas formas de resistência que possam contrariar eficazmente o retorno desse horror sem nome que a pandemia nos fez incautamente esquecer. E encontrar heróis populares que simbolizem métodos de luta eficazes e ao alcance de todos, figuras de oprimidos que lutem contra os poderosos, se necessário recorrendo a processos de legalidade duvidosa destinados a extorquir ao inimigo aquilo que pertence ao povo. Lamentavelmente, e ao contrário de certos povos como os ingleses, que desde Robin dos Bosques possuem uma extensa galeria de heróis populares que se dedicam poética e nobremente a esse ramo de actividade, os portugueses – descobri-o há uns tempos – falham clamorosamente no capítulo. Políticos e banqueiros ainda vá lá que vá, para eles ainda há sempre um qualquer lugarzinho no nosso modesto panteão. Agora populares praticamente anónimos não há, ou então contam-se pelos dedos de uma mão. Nem na vigarice o “elevador social” parece por cá funcionar.

Foi por isso com grande satisfação que, graças a um recente artigo de Ana Henriques no Público (“Gang usava restaurantes para traficar droga com a ajuda de polícias”), me lembrei de um outro artigo, este no Observador e publicado em 2017, da autoria de Rita Porto (“Mista de marisco para dois a 250 euros? Bacalhau a 120 euros? Restaurante de Lisboa cobra preços exorbitantes, mas é ilegal?”). Ambos os artigos narram as aventuras de um ex-carteirista, com prática consolidada no eléctrico 28, no ramo da restauração: José Cardoso, “o Xula”. O Xula, note-se, não renegava as suas origens: assumia-as, como se diz. E assumia-as tanto que o seu primeiro restaurante se chamava exactamente “28”. Mas, até porque era dedicado progenitor de três filhos folgazões e ambiciosos, sentiu necessidade de alargar o seu império culinário. Daí ter tomado posse, entre outros, de um restaurante na baixa lisboeta, na rua dos Correeiros, primitivamente chamado “Portugal no Prato”, depois “Made in Correeiros” e, finalmente, creio, “Obrigado, Lisboa”. As sucessivas mudanças de nome tinham uma razão de ser óbvia: o restaurante era, no Tripadvisor e em outros sites especializados, unanimemente considerado o pior restaurante de Lisboa. Convinha, portanto, ir variando o nome: por algum tempo, o novo nome enganaria.

E porque é que era o pior restaurante de Lisboa? Bom, a comida era aparentemente péssima e o serviço execrável. Mas, sobretudo, o Xula tinha um truque formidável. Os empregados recrutavam os clientes na rua – turistas, é bom de ver – e mostravam-lhes a lista, com pratos entre os 8 e os 15 euros. Já com as vítimas sentadas na mesa, os empregados insistiam na excelência dos pratos do dia – bacalhau com natas ou mista de marisco, por exemplo –, que os inocentes supunham andar pelo mesmo preço, e aceitavam. Só de ver as fotografias dos pratos, uma pessoa pensa seriamente em dedicar-se a uma dieta exclusiva de Weetabix, mas isso é uma outra questão. O problema vinha no fim, com a conta. Entre muitas outras coisas, a “mista de marisco” custava 250 euros, o bacalhau com natas 120, e por aí adiante. Confrontados com os preços, os clientes protestavam e então era-lhes mostrada a última página do extenso menu onde, de facto, estavam assinalados os pratos e os respectivos preços. Aparentemente, nada a fazer, tanto mais que, a acreditar no artigo de Ana Henriques, havia polícias e inspectores da ASAE que trabalhavam (nisso e noutras coisas que não vêm aqui para o caso) ligados ao restaurante.

Em que é que o caso do Xula é interessante? Primeiro, porque mostra como é fácil vigarizar protegidamente o próximo, explorando a sua boa fé e a sua facilidade de acreditar. Mas isso toda a gente sabe, não é novidade. Em segundo lugar, e volto assim ao princípio do artigo, o Xula mostra o caminho do futuro, quando a relativa normalidade pós-covid sobrevier e as tais hordas turísticas que tanto horror provocam, mesmo que nos tirem da miséria costumeira, voltarem ao ataque. O que é preciso é uma organização nacional de Xulas que convençam a estrangeirada a não voltar a pôr cá o pé. Que mil Xulas floresçam em Lisboa, no Porto e nos mais remotos lugares do país. Ficamos com má-fama e mais pobres? Que importa, se as nossas casas e as nossas ruas forem só nossas? É uma causa simultaneamente aristocrática e de esquerda, além de, factor importantíssimo, acabando com as viagens de avião, contribuir para a salvação do planeta, segundo os conselhos de Greta Thunberg e dos seus delegados nacionais. Querem melhor? Melhor só Guterres nomear o Xula para embaixador da boa vontade. Que linda história de redenção seria…

PS. Por razões de trabalho, a minha coluna no Observador ficará suspensa durante o mês de Janeiro. Voltarei em Fevereiro. Até lá, boas entradas em 2021.

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