Cada vez que vemos Carles Puigdemont na televisão – que tem sido muitas vezes – parece que está à beira de um ataque de nervos. Também não admira. Só ontem assistimos a quatro avanços e recuos do líder independentista catalão. Logo ao início da manhã dizia-se que era quase certo que ia haver declaração de independência. Era inaceitável ceder às pressões de Madrid. Contudo, a manhã não tinha terminado e Puigdemont desdisse-se: o melhor seria mesmo convocar eleições antecipadas (o que travaria a ativação do artigo do descontentamento) e até já havia data: 20 de dezembro.

Suspirou-se cautelosamente de alívio. E a verdade é que a cautela do suspiro se justificava. Puigdemont vinha anunciar a decisão, em conferência de imprensa já estava marcada, mas os partidários que suportam a coligação “Juntos pelo Sim” desencadearam uma “pequena” revolta interna. A ERC, o partido republicano independentista e da CUP, o movimento de esquerda radical separatista opuseram-se tão veementemente à cedência a Madrid, que o presidente da Generalitat já nem veio encarar os jornalistas, que esperavam as suas declarações. Houve demissões no CDC. E Puigdemont deixou a decisão para o parlamento regional. Entretanto, o prazo dado por Madrid para que a Catalunha tomasse uma decisão, em plena consciência das consequências, tinha-se esgotado.

Agora, quer se declare independência quer não até ao Senado reunir esta tarde, e se não houver nenhum recuo de última hora parece que é mesmo o que vai acontecer, a aplicação do artigo 155 é praticamente inevitável. A Catalunha será governada diretamente por Madrid a partir de amanhã.

Dado este cenário, realço quatro elementos que me parecem essenciais. Em primeiro lugar, fui muito crítica da forma como Madrid geriu a crise catalã durante, e logo após o referendo de 1 de outubro. Mas Mariano Rajoy terá percebido o seu erro a tempo e pareceu ganhar a sensibilidade política que uma situação desta natureza requer. Conquistou os apoios parlamentares necessários, ofereceu à Generalitat tempo para decidir o seu próprio futuro “dentro da legalidade” e a possibilidade de convocar eleições antecipadas. É um passo político arriscado e este braço de ferro custará a vida política a algumas das personagens principais conflito. Mas tem três grandes vantagens: por um lado, apresentado desta forma, o artigo 155 já não se parece com uma “bomba atómica” como tantas vezes se disse. Com esta posição tão mais moderada, o governo central espanhol sai reforçado, por ter recuperado a postura de estado que lhe faltou nos primeiros dias. Por outro lado, as eleições antecipadas (a que o artigo 155 obriga) permitem um esclarecimento muito mais efetivo da vontade popular catalã. Assim, sejam quais forem os resultados, pode recomeçar-se o diálogo do zero, e evitar muitos dos erros do passado. Finalmente, a verdadeira vitória de Madrid foi ter dado tempo suficientemente aos governantes (e opinião pública) catalães para exporem as suas divergências na praça pública. A Generalitat caiu em descrédito; se Puigdemont montou uma armadilha a Rajoy com o referendo ilegal, Rajoy montou uma armadilha a Puigdemont com a criação de um compasso de espera, que o líder do “Juntos pelo Sim” não foi capaz de gerir.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em segundo lugar desde que Carles Puigdemont, no dia 10 de outubro, declarou a independência para a suspender imediatamente, o governo Catalão não mais se voltou a entender. Adia, muda de opinião, dá o dito pelo não dito. Ora isto prova que o presidente da Generalitat não só é um líder fraco que deu um passo maior do que as pernas, como é refém das forças independentistas mais radicais da sua própria coligação. Puigdemont legitimou-se como um líder corajoso à frente de um movimento de contestação contra a toda poderosa Madrid, alegando estar a agir em nome da vontade dos catalães. Mas hoje é um líder fraco, incapaz de manter a ordem dentro da sua própria casa.

Em terceiro lugar, e apesar de todas estas trapalhadas, as sondagens mostram que os catalães se mantêm divididos e as eleições antecipadas não têm vencedor anunciado. Ainda é cedo para fazer prognósticos sobre o desfecho da crise. Muita água pode correr debaixo da ponte. Apesar dos volte-faces permanentes, o drama catalão pode estar para durar.

Finalmente, nenhuma destas questões isenta Espanha de, paralelamente, pensar seriamente numa revisão constitucional. Como escreveu Madalena Meyer Resende, especialista em matérias de nacionalismo, “em 1978, Espanha estava imersa num intenso debate sobre o estado das autonomias. Assim, a Constituição que emergiu desse debate falhou em atender às reivindicações da Catalunha e do País Basco. Madrid criou um sistema disfuncional e dispendioso que não agrada completamente a nenhuma das partes.” Face a esta já longa crise catalã, fugir para a frente do problema de fundo deixou de ser uma opção.

Os meses que mediarem a suspensão dos poderes da Catalunha e as eleições para o parlamento regional vão ser uma prova de fogo para ambos os lados, especialmente para os catalães. Vão viver em condição duríssimas: a deslocalização das sedes dos bancos e das empresas para outras zonas de Espanha pode continuar; o cidadão comum vai viver entre o domínio das forças políticas e de segurança de Madrid (incluindo a polícia nacional) e os independentistas mais radicais que usarão de todos os meios para lutarem pela secessão. Esta situação vai gerar grande tensão e Madrid está obrigada a tornar o processo de espera o mais breve possível.

Esta vai ser, pois, a prova dos nove: encurralados entre Madrid e Barcelona, os catalões vão ser testados na sua verdadeira vontade de sessação de Espanha. Se conseguirem passar por estes tempos e voltarem a eleger um governo independentista, Madrid fica de mãos e pés atados. Caso o cenário contrário se verifique, o golpe palaciano (e arruaceiro, passo o pleonasmo) separatista terá falhado redondamente. Mas não é demais reforçar os dois problemas fundamentais: (1) independentemente do que acontecer nos próximos meses, questão de fundo mantém-se, e permanecerá enquanto a Constituição não for revista. É a única forma de evitar outros longos meses de outubro; e (2) o que suceder na Catalunha nos próximos tempos, terá um impacto profundo não só em Espanha, mas na Europa, cheia de enclaves nacionalistas mais ou menos adormecidos. A maior diferença das últimas semanas está na mudança da postura de Madrid, firme, mas mais conciliadora, e na tão falada “reposição da legalidade”. Mas é preciso não esquecer que a legalidade é muito pouco, quando o problema é, sobretudo, político.