Há 1,5 milhões de Portugueses residentes no estrangeiro com direito a voto em eleições nacionais. Na últimas Presidenciais votaram menos de 2%. Nas anteriores legislativas foram 10,8%, à boleia do voto por correspondência que aí se estreou (e que não é possível nas restantes eleições). No Reino Unido, onde vivo e onde vivem também cerca de um décimo destes eleitores abandonados, a percentagem de votantes foi semelhante.

Dirão alguns: os emigrantes não estão assim tão interessados em votar. Afinal, a política nacional pouca relevância terá no seu dia-a-dia. Assunto arrumado? Não, longe disso.

Em primeiro lugar porque, como qualquer emigrante confirmará, os votos que ficam por exercer devem-se, antes de mais, aos intermináveis obstáculos que o Estado coloca entre nós e o direito constitucional ao voto.

Em segundo lugar, porque a política nacional é muito mais relevante para os emigrantes do que as análises superficiais tendem a revelar. A política nacional – ou a falta de políticas – é, em grande medida, a primeira a empurrar-nos para fora do país. Fá-lo pela incapacidade que revela de construir um país de oportunidades, uma economia geradora de riqueza e um elevador social que permita a todos, sem excepção, a realização das suas expectativas individuais.

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E, finalmente, porque é também pelo voto que contribuímos para a mudança que talvez permita aos nossos filhos equacionarem o regresso a Portugal daqui a uns anos.

Olhemos primeiro para os obstáculos ao exercício do direito de voto: as opções de voto resumem-se ao voto presencial nos poucos postos da rede consular e ao voto postal, apenas disponível nas legislativas (a legislação não permite a opção de voto postal em presidenciais e europeias). Ora, a opção presencial é fisicamente impraticável para a larga maioria das 1,5 milhões de pessoas espalhadas pelo globo, como bem ilustram as últimas presidenciais, com mais de 98% de abstenção entre os emigrantes. O voto postal, que foi um passo recente (ainda que tardio) na direcção certa, é extraordinariamente complexo. Há cartas das Finanças mais simples de descodificar e a informação disponível parece normalmente assumir que o cidadão é um jurista experimentado.

Está logisticamente tão mal organizado, que muitos de nós, no Reino Unido, nas últimas legislativas, vimos os votos devolvidos porque os serviços postais não conseguiram validar o porte pago nos envelopes emitidos pelo Ministério da Administração Interna. O nível de incompetência seria surpreendente, não fosse ficar-se com a sensação de que o objectivo é exactamente deixar areia na engrenagem para garantir que a máquina nunca chega a funcionar em pleno.

Está essencialmente tudo por fazer, a começar pelo princípio elementar: o direito ao voto é um dos mais básicos princípios democráticos e é dever do Estado torná-lo acessível a todos, estejam onde estiverem. Cabe ao cidadão escolher como quer votar. Não cabe certamente ao teimosamente omnipresente Estado condicionar as suas opções, dizendo-lhe em que edifício consular votar ou se o deve fazer por correio, por fax ou por sinais de fumo. O Estado deve facilitar o acesso, o cidadão deve escolher. Simples.

E isto é muito mais fácil de fazer do que parece. Basta vontade e competência.

Faz-se através da digitalização dos cadernos eleitorais com actualização em tempo real, permitindo-me votar em qualquer lugar (foram milhares os emigrantes que não votaram nas presidenciais portuguesas porque, pasme-se, estavam em Portugal). Isto permitiria também actualizar o recenseamento de forma digital, sem prazos absurdos que normalmente já foram ultrapassados quando se começar a falar em eleições.

Faz-se, alargando os períodos de voto antecipado, facilitando a vida a quem reside a centenas de quilómetros dos postos consulares e, porque não, a qualquer cidadão que escolha votar por antecipação. Assim se acabava com os intermináveis debates sobre a abstenção por causa do sol, por causa da chuva, por causa do futebol.

Faz-se, alargando o voto por correspondência a todas as eleições nacionais, tema em que espero que haja consenso político em torno das propostas que se seguiram ao discurso de Marcelo Rebelo de Sousa na noite das eleições. Mas faz-se, também, resolvendo os problemas de fundo deste mecanismo: as moradas erradas, os portes pagos que não funcionam, os boletins que continuam a ser enviados em papel e não em formato digital. Ao Estado não cabe apenas autorizar o voto por correspondência, cabe-lhe torná-lo numa realidade, sem desculpas ou justificações para a sua própria incompetência.

Faz-se debatendo e considerando, de uma vez por todas, mecanismos de voto electrónico em mobilidade. Isto tem de deixar de ser tabu. Votar electronicamente apresenta certamente vários desafios técnicos, em particular relacionados com a integridade e inviolabilidade do voto. Em 2021 estes são certamente ultrapassáveis, criando condições para garantir a confiança no sistema. Mas é preciso arregaçar as mangas, colocar este desígnio no centro da acção política e mobilizar as pessoas para o debate e os recursos para desenharmos o que tiver de ser desenhado. O desígnio requer vontade política, que não tem existido em Portugal. Mas a implementação requer apenas competência técnica e essa Portugal tem (veja-se o sucesso da transformação da AT, tornando-a num muito eficaz rolo compressor digital de cobrança de impostos).

Todas estas são propostas óbvias, pelo que é evidente que não são as soluções que faltam. O que falta hoje é vontade, tal como tem faltado aos sucessivos governos nas últimas décadas. Vamos andando de paliativo em paliativo, cada vez com menos participação eleitoral e, também por esta via, com uma democracia em cada vez pior estado. O Estado, que em Portugal se mete em todos os aspectos da nossa vida, é omisso nesta sua função fundamental: zelar pela qualidade da democracia. É mais um exemplo do estado a que chegou o Estado.

No que a nós, emigrantes, diz respeito, ainda há dias um comentador confessava em canal aberto o que todos já sabemos. Os emigrantes votam, frequentemente, de forma diferente da maioria dos residentes em Portugal (nas últimas presidenciais, por exemplo, o sexto candidato mais votado em território nacional foi o quarto no estrangeiro e o terceiro no Reino Unido). Não o fazem por serem do contra, mas porque não são tão permeáveis à propaganda política nacional. Não por serem distraídos, mas porque observam e reconhecem as oportunidades que as liberdades económica e social lhes oferece nos seus países de acolhimento. Porque vivem culturas onde o mérito é reconhecido.

É por isto que o voto de milhão e meio de portugueses, por causa da sua morada, continua a ser activamente dificultado. Porque estes portugueses, expostos a exemplos de países mais livres, são um veículo importante para o que Portugal precisa desesperadamente: liberdade de pensar, liberdade de empreender e liberdade para nos realizarmos.

(Mas há mais elefantes na sala, como a representatividade do voto da emigração na AR, em que 13% dos eleitores Portugueses são representados apenas por 2% dos assentos parlamentares. Terá de ficar para outra altura.)