Quando o assunto é a Coreia do Norte e a vontade política do Kim Jong-un de testar a comunidade internacional, numa semana tudo pode mudar. O presidente Donald Trump dizia num discurso em Phoenix, a 22 de agosto, que Pyongyang estava finalmente a respeitar os EUA, palavras que teve que engolir, na madrugada de terça-feira. Os japoneses que vivem no norte do país foram acordados ao som de sirenes de emergência e avisos que os instavam a abrigar-se em edifícios seguros ou no subsolo. Um míssil balístico sobrevoava a região e veio cair no mar, a cerca de 1700 quilómetros de Hokkaido. Este teste veio mexer nas peças do tabuleiro de xadrez dos Estados envolvidos nesta tensão conflitual, cujo tom subiu vários decibéis, de uma só penada.

Começamos pela Coreia do Sul e pelo Japão, que estão na posição mais desconfortável. Por um lado, são os alvos principais de um eventual ataque nuclear, por razões de proximidade geográfica e inimizade histórica. Por outro, são profundamente vulneráveis. O facto de não possuírem meios de retaliação torna a sua segurança dependente das soluções encontradas pela comunidade internacional para os defender da Coreia do Norte. Para sermos mais exatos, dependem dos Estados Unidos da América e das suas decisões quanto à forma como lidar com o conflito. No entanto, o lançamento do míssil no domingo passado transformou a perceção da ameaça. Agora a inação perante este acontecimento torna-se inaceitável para qualquer destes países.

O que nos leva ao conjunto de atores reunidos à volta da mesa do Conselho de Segurança da Nações Unidas numa reunião de emergência convocada pelo Japão e os EUA. Apesar do empenho de Nikki Haley, a embaixadora norte-americana na ONU, o encontro resultou num fracasso. Houve uma declaração conjunta da condenação, mas não houve medidas adicionais e tornou visível a desunião dos membros permanentes: os Estados Unidos mantêm a sua posição de cerrar fileiras contra a Coreia do Norte (apesar das opções cada vez mais limitadas, dado que Pyongyang parece imune às sanções e movimentações defensivas no território adversário), enquanto a China, num volte-face que não seria de esperar naquele contexto, mexeu nos peões do tabuleiro.

Numa curta declaração, o embaixador chinês na ONU, Liu Jieye, instou as duas partes a diminuir a tensão. Se, por um lado, condenou a Coreia do Norte pelo lançamento do míssil, por outro, colocou Pyongyang em pé de igualdade com os Estados Unidos – pela retórica inflamatória do presidente, pelos exercícios militares conjuntos que decorriam em solo japonês (um exercício regular) e, principalmente pela colocação em curso de um escudo antimíssil na Coreia do Sul.

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Ora, se o comportamento de Washington (defensivo) e Pyongyang (ofensivo) não são de todo comparáveis, esta jogada no tabuleiro de xadrez diz-nos muito sobre a nova posição de Pequim. A China deseja tomar uma posição de liderança. Tal como referido na semana passada, o estilo populista do presidente Donald Trump permite aos seus adversários internacionais relegarem os EUA para uma posição de irresponsabilidade que tem de ser colmatada pelos senhores que se seguem. Pequim pratica, há pelo menos uma década, uma política externa de aproveitamento de oportunidades para pé-ante-pé chegar a uma posição cimeira na hierarquia de poder. Este foi mais um passo. Se até há relativamente pouco tempo a posição perante a Coreia do Norte, sua aliada, era ambígua (pela primeira vez a 5 de agosto deste ano, a China votou a favor de um pacote de sansões duríssimas contra Pyongyang), agora clarifica-se. Numa jogada hábil, Pequim segurou Kim Jong-un e relegou Washington do papel de líder dos países que pretendem travar o desenvolvimento nuclear na região para responsável pela escalada da desestabilização no nordeste asiático.

É um enorme risco estratégico, assumir a liderança de um problema em que o principal protagonista é Kim Jong-un que declarou, cerca de 24 horas após do lançamento, que o alvo simbólico era mesmo os Estados Unidos, e que o episódio de Hokkaido é o primeiro de vários que visam conter Washington e a sua intervenção na região. Com estas declarações, a Coreia do Norte muda o objetivo estratégico do desenvolvimento de programas nucleares: se a principal (e quase sempre única) finalidade era defensiva – um país que possuísse ogivas nucleares estava a salvo de ataques exteriores devido ao risco elevado de retaliação – agora passou a ser ofensiva. Por outras palavras, possuir armamento nuclear passa a permitir um conjunto de manobras ofensivas e chantagens internacionais que têm que ser levadas a sério porque o país agressor desenvolveu armas de destruição massiva e meios para as lançar.

Assim, em apenas uma semana, assistimos a três grandes mudanças no nordeste asiático: (1) a perceção da ameaça norte-coreana relativamente aos vizinhos aumentou consideravelmente, chegando, talvez, a um ponto de não retorno; (2) a China assumiu a liderança da mediação do conflito relegando os EUA para o papel de instigador do conflito: e (3) Pyongyang transformou o potencial ofensivo do armamento nuclear. E não sejamos ingénuos: apesar de tudo, os EUA ainda são o Estado mais poderoso do mundo. E estas três mudanças têm tudo para desencadear uma reação robusta. Sem precedentes históricos e com a Casa Branca e o Departamento de Estados a fazerem declarações diferentes, temos que esperar para ver qual é.