Está a decorrer «uma das mais atrozes tragédias humanas desde o Holocausto: o potencial genocídio dos uigures e outros muçulmanos na China». «Depois do Holocausto, o mundo disse “Nunca mais”. Hoje, repetimos mais uma vez essas palavras “Nunca mais”»

É nestes termos tão categóricos e dramáticos que se exprimem setenta e seis dirigentes religiosos, muçulmanos, judeus, budistas e cristãos (entre estes últimos, o arcebispo anglicano emérito de Canterbury, Rowan Williams, e os cardeais Charles Bom, presidente da Federação das Conferências Episcopais da Ásia, e Ignatius Suharyo, arcebispo de Jacarta, Indonésia), numa declaração de condenação da perseguição aos uigures por parte do governo chinês.

Particularmente significativo é o facto de a declaração, com essa alusão ao genocídio dos judeus pelo regime nazi, ser subscrita por vários rabinos, sendo conhecidas as naturais reservas de representantes do judaísmo quando se pretende comparar alguma outra tragédia a esse genocídio.

A declaração denuncia o que por várias fontes vem sendo comprovado: mais de um milhão de uigures e outros muçulmanos estão presos em campos de concentração, sujeitos a doutrinação política e anti-religiosa, homicídios, torturas, trabalhos forçados, violência sexual, extração de órgãos forçada. Fora desses campos, a liberdade religiosa é negada nos seus aspetos mais básicos (destruição de mesquitas, detenções pela posse do Corão ou pela prática de oração e jejum). Filhos são separados dos seus pais. Uma campanha de esterilização forçada tem por alvo as mulheres dessa etnia. Os mais intrusivos sistemas de vigilância invadem todos os aspetos da vida dos cidadãos da região de Xinjiang, onde decorre esta perseguição. A qual tem por objetivo claro a destruição da identidade cultural do povo uigure, identidade ligada à religião islâmica, vista como perigosa para a hegemonia ideológica do regime chinês e potencialmente geradora de terrorismo (de que não pode, porém, obviamente, ser acusado todo um povo).

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A declaração não deixa de condenar a violação da liberdade religiosa (como valor verdadeiramente universal) de que na China também são vítimas outras confissões: «Estamos com os uigures. Também estamos com os budistas tibetanos, os adeptos da “Falung Gong” e os cristãos de toda a China, que enfrentam a maior repressão da liberdade religiosa desde a Revolução Cultural».

Contra o silêncio e a indiferença, e salientando também a solidariedade inter-religiosa na defesa da dignidade humana (evocando a figura do pastor luterano Dietrich Bonhoffer, morto em Auschwitz), afirma a declaração: «No Holocausto, alguns cristãos salvaram judeus. Alguns ergueram a sua voz. Disse Dietrich Bonhoffer: “O silêncio diante do mal é, ele mesmo, um mal…Não falar é falar. Não atuar é atuar”»

Vão-se ouvindo cada vez mais vozes a denunciar esta tão grave violação dos direitos humanos. Mas prevalece ainda a indiferença da comunidade internacional (incompreensível dada a gravidade do que está em causa, comparável ao Holocausto). A essa indiferença não é certamente estranho o poder económico da grande potência em que rapidamente se tornou a China nas décadas mais recentes. Os negócios falam mais alto…

De assinalar, mesmo assim, que, perante provas de que na origem das cadeias de abastecimento de grandes empresas estejam trabalhos forçados de uigures, a “Lacoste” e a “Adidas” se tenham comprometido a eliminar esse facto no que lhes diz respeito. Mas restam outras empresas, igualmente importantes.

Durante muito tempo, pensou-se que a democracia e o respeito pelos direitos humanos decorreriam automaticamente do crescimento económico chinês (e daí a menor preocupação com as violações dos direitos humanos na China quando com ela se negoceia). Mas essa expectativa revela-se agora ilusória; isso não se verificou, como esta e outras violações desses direitos bem demonstram.

Há que dar, pois, muito maior relevo às agressões aos direitos humanos na China. Para que, no futuro, não venha a lamentar-se a indiferença e a inação de hoje e tenha que dizer-se outra vez: “Nunca mais”.