Portugal tem um sistema de saúde que compreende o serviço nacional de saúde (SNS) e todos os outros prestadores de cuidados dirigidos à promoção da saúde e à prevenção e tratamento das doenças. Mas a verdade é que o sistema funciona de uma forma que, ao invés de ser alternativa, complementar e sequencial, é compartimentada, redundante e competitiva no pior sentido da palavra. Compete-se pela procura e não pela qualidade. Na realidade nada indica que será a perceção da qualidade clínica dos serviços que levará um cliente a optar por este ou aquele serviço, seja ele público ou privado. No entanto, neste campo da avaliação dos determinantes das escolhas dos utilizadores de serviços de saúde não se sabe muito em Portugal. Apenas é claro, de tudo o que tem sido estudado em termos internacionais, que o acesso, em termos geográficos e, acima de tudo, temporais é determinante na configuração das escolhas em saúde, a que se segue a confiança no prestador. Isto, como é evidente, para quem tem capacidade económica para escolher. Não é assim para a maioria dos portugueses.

Depois de experimentado um serviço, as questões que se prendem com a satisfação pelo serviço prestado, onde a perceção da efetividade do tratamento está limitada por condicionantes de tempo de evolução das doenças e pela ausência de conhecimentos médicos da maioria da população, adquirem maior valor. Cliente satisfeito é o que pode voltar a usar a mesma oferta de serviços, caso possa pagar por ela. Note-se que a satisfação dos outros constrói a reputação que serve de suporte para a angariação de clientes futuros. Infelizmente, o SNS tem um grave problema de reputação que os seus resultados, excelentes em várias áreas, não conseguem ultrapassar.

Os trabalhadores do SNS não têm nenhum incentivo, para lá do seu orgulho e gosto pela “camisola”, para fazer mais no sentido de aumentar a satisfação dos seus clientes. Pior, o SNS tem dificuldade em aceitar que os utentes devem ser clientes, ou seja, pessoas dotadas de capacidade de escolha. Enfim, como já escrevi, a maioria dos utentes do SNS ainda não tem capacidade para ir a outro prestador, o que não confere aos prestadores públicos o direito de os tratar pior do que trataria se eles fossem clientes com opção de fuga para outro lado. Mais grave ainda é que há um grupo, tendencialmente a engrossar, de utentes pagadores de impostos e nem por isso muito abonados, que acabam por ter de ir ao setor privado procurar os cuidados que o Estado não lhes presta em tempo útil.

A galinha dos ovos de ouro dos privados e das companhias de seguros é a incapacidade do SNS. Pois é, a classe média paga muito, cada vez mais se considerarmos impostos e despesas out of pocket, por um serviço público a que todos têm direito e que falha em funções básicas, nomeadamente no que concerne aos tempos de resposta em tempo útil. O tempo de espera deve ser sempre encarado na perspetiva de quem procura cuidados antes de ser declarado como “adequado” para quem presta o serviço. “Clinicamente adequado”, o que o Estado insiste em chamar, de forma ofensiva, como “aceitável”, só pode ser aceite por quem não tem alternativa. O tempo de espera pode ser adequado para efeitos de planificação de respostas ou litigação judicial, mas para aquele que sofre de uma qualquer maleita, o tempo é sempre de urgência, independentemente da gravidade clínica que um profissional habilitado possa atribuir ao mal. É por isso que a procura inadequada de serviços de urgência se resolve, em primeiro lugar, pela existência de ofertas alternativas de cuidados quase imediatos e, em segundo lugar, pelo aumento da literacia em saúde. Aumentar os profissionais nos serviços de urgência, inventar especialistas em medicina de urgência, pagar melhor as horas extra, etc. melhoram a oferta, mas não alteram o perfil de procura.

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Tudo isto vem a propósito das declarações proferidas por uma oncologista de uma empresa prestadora de cuidados de saúde que pude ler, há pouco mais de um mês, num semanário. Dizia a minha colega que “há dois tipos de tratamento oncológico: o dos que podem pagar e o dos que não podem”. Para lá do evidente truísmo da afirmação, já que é universalmente reconhecido que maior riqueza garante melhores cuidados, melhores condições de vida e maior sobrevivência (mesmo descontando os riscos hipoteticamente inerentes a piores hábitos de vida que pudessem estar associados a maior poder de compra, a verdade é que os mais pobres estão menos informados, comem pior, fumam mais, bebem mais álcool, praticam, menos exercício físico, etc.), há elementos nesta informação que interessa dissecar.

Em Portugal poder pagar por tratamentos implica, como referi atrás, mais facilidade em chegar aos cuidados em tempo ainda útil e mais conforto. Como escreveu um colunista, “não há nada de errado em ir a um restaurante agradável em vez de uma taberna”. Nada nos garante que os melhores profissionais, pese embora os melhores salários, já estejam só no privado. Enfim, tenho de reconhecer que só exerço medicina no SNS e isso coloca-me na posição de estar a ser juiz em causa própria, mas não acho que seja pior médico do que muitos dos que conheço e só trabalham “na privada” ou que habitam nos dois setores. Bem, sendo mais modesto, talvez eu não seja tão bom profissional como julgo e, por isso mesmo, nunca me quiseram contratar para fazer medicina num hospital privado. Bem, tenho de ser honesto, houve um breve momento em que tentei fazer alguma medicina privada, para lá do meu horário público, e não gostei da experiência. Não gostei porque o exercício era limitado pela capacidade de pagar que cada cliente tinha. No meu campo de trabalho, o dos cancros de sangue, era limitação a mais para o meu gosto.

Também nada nos garante que os resultados clínicos, a efetividade, seja melhor no privado do que no público ou vice-versa. Ninguém sabe. Não há comparações de resultados entre público e privado, nem sequer entre os vários prestadores do SNS. Igualmente, apesar de todas as dificuldades, que eu não me tenho cansado de denunciar, no que concerne ao acesso a medicamentos inovadores, que poderão começar por só ser aplicados em quem tenha dinheiro para os comprar ou possua cobertura complementar de seguro de saúde, a verdade é que não há fiscalização suficiente e eficiente que garanta a não utilização abusiva de medicação no setor privado. Nada impede que um prestador privado possa vender encarniçamento terapêutico ou abuse de tratamentos não autorizados e off label. Desde que haja quem pague…

O único verdadeiro controlo de qualidade dos prestadores é a satisfação dos utilizadores, o que nem é um mau sistema de avaliação de prestação de serviços, apesar de incompleto. Os privados produzem publicidade das mais variadas e diversas formas, algumas mais encapotadas como a de pretenderem assumir alguma superioridade tecnológica – muitas vezes inútil – e exibirem uma carteira de clientes que lhes confere estatuto social mais do que efetividade clínica. Não é raro ler-se, até de políticos com lugares de governo, que se tratam neste ou naquele hospital privado, como se o SNS fosse só para os “leprosos” que governam. Enfim, lá acabam por morrer, a inevitabilidade dos seres vivos, como todos, da mesma forma que os outros e não raras vezes nos hospitais do SNS que, como é a sua missão, acolhem toda a gente.

Dito isto, sou defensor de que o acesso de todos a todo o sistema é bom e desejável.

Em primeiro lugar, a redistribuição de acesso é mais importante do que a redistribuição de capacidade financeira. A função do Estado não é sustentar os cidadãos, mas antes disso garantir que todos possam aceder aos serviços a que constitucional e civilizacionalmente todos devem poder aceder, nomeadamente saúde e educação.

Em segundo lugar, a existência de alguma competição é salutar e só pode haver competição e comparação se o universo de utilizadores for, a priori, equivalente e não selecionado pelo poder de compra.

Em terceiro lugar, a forma de atuar e os procedimentos de segurança existentes passarão a ser melhor escrutinados. Repito que não existem, por enquanto, demonstrações de que os resultados clínicos sejam melhores no setor privado ou público, mas é evidente que a maior experiência clínica e por essa via a segurança clínica tenderia a estar concentrada no SNS. Só que os privados, em particular os hospitais mais recentes, já vão tendo acreditação pela Joint Commission International e esta ainda é das melhores em termos de controlo de riscos e de segurança para o doente. Mas se, por um lado, é certo que já há estruturas privadas em Portugal com capacidade técnica para procedimentos complexos, o que é bom, nem todos os privados já têm acreditação ou dimensão suficiente para fazer algumas das coisas que dizem fazer ou que querem vir a fazer. Com o aumento do universo de pessoas que possam aceder ao setor privado, colmatando deficiências de capacidade do setor público, ambos os setores poderão ganhar em eficiência, experiência e capacidade de intervenção.

Em quarto lugar, garantir o acesso de utentes menos abonados aos hospitais privados é uma forma de eliminar a seleção por poder económico, o que poderá irritar os clientes mais “finos” mas será sempre uma vantagem para a aquisição de capacidade de intervenção e know-how.

Em quinto lugar, pela via que elenquei atrás e pela força da obrigatoriedade – a estabelecer por contratualização — de receber doentes de todas as proveniências e com todo o tipo de riscos associados, elimina-se a desnatação que está muitas vezes na base dos aparentes melhores resultados de algum setor privado. Diga-se, com rigor, que a desnatação também existe no setor público, sendo que “desnatação” (a não aceitação de doentes com mais problemas ou riscos associados) não deve ser confundida com referenciação em rede ou aplicação criteriosa de critérios clínicos para a escolha do tratamento mais adequado.

Em sexto lugar, a abertura da oferta privada à procura por utentes do SNS também poderá ser uma forma de haver mais enfoque na especialização dos prestadores, com a consequente concentração de saberes e melhoria de resultados. Isto será válido para privados e públicos cujas ofertas especializadas deverão ser complementares.

O meu primeiro filho, já lá vão mais de 25 anos, nasceu num hospital do SNS. A experiência foi tão traumática para a minha mulher, era tal o nível de imundície nas casas de banho, que mesmo assumindo algum grau de perda de segurança clínica, a minha filha, poucos anos depois, acabou por nascer numa clínica privada. Até a uma colega pediatra tive de pedir o favor de ir assistir ao parto. Outros tempos. É certo que o serviço de obstetrícia do hospital público foi remodelado pouco tempo depois e, seguramente, já nada terá a ver com a enxovia que era há 25 anos.

Também estou esperançado, quase certo, de que os baixos níveis de segurança clínica e de algum amadorismo, bem-intencionado, já foram há muito ultrapassados nos hospitais privados mais antigos. E os novos hospitais privados, aqueles que entretanto surgiram em Portugal com dimensão e multidisciplinaridade bastante para serem autossuficientes, são estruturas com capacidade de intervenção comparável ao que de melhor se faz internacionalmente. Ainda longe de ser perfeito, o sistema de licenciamento tem vindo a melhorar, o que não se pode dizer de forma universal para a fiscalização da qualidade clínica seja no privado ou no público.

É verdade, “há dois tipos de tratamento oncológico em Portugal, o dos que podem e o dos que não podem pagar”. Não estou convencido que o tratamento dos que podem pagar seja melhor do que o dos “pobres”. Repito, ninguém sabe. Mas há as questões do tempo de acesso e do conforto. O Estado não tem investido em conforto e modernidade das instalações e dos espaços, e compraz-se com tempos de espera imorais que apoda de “aceitáveis”. A falta de manutenção é crítica e demasiado gritante para poder ser escamoteada. Todos, até os pobres que não pagam nada e os “ricos” que pagam o SNS, têm direito a conforto máximo e satisfação atempada. É por isso, pela procura de rapidez de resposta e de conforto, acima do nível de taberna, que os menos ricos, as denominadas classes média e média baixa são já quem mais seguros de saúde têm contratado. A expansão do mercado de seguros de saúde já não é apenas o resultado da busca de mais conforto e higiene que uma classe social mais alta queria legitimamente salvaguardar. É uma enorme fatia da população que se esmifra para poder ter acesso a uma consulta em dias ou semanas em vez de esperar anos.

Logo, precisamos que os cidadãos possam aceder a toda a capacidade do sistema de saúde, ao mesmo tempo que o SNS deve melhorar todos os aspetos da sua qualidade (efetividade, eficiência, controlo de riscos e satisfação daqueles a quem presta serviços e dos seus trabalhadores), procurando especialização e oferecendo serviços onde seja insubstituível. Tudo isto baseado numa regulação sistémica que terá de passar por reforço de poderes e de capacidade de intervenção da Entidade Reguladora da Saúde e pela melhoria do trabalho das próprias agências do Estado que dependem do ministério da saúde, com especial destaque para o Infarmed e DGS.

Vamos ver como se esbanjarão os propalados milhões que o Dr. António Costa diz que agora tem para gastar em melhoramentos de estruturas e equipamentos. Espera-se que o gastem em substituições de equipamentos, recuperações de imobiliário, reparações e, já agora, em construções que sejam mesmo necessárias em vez da habitual megalómana exibição socialista de promessas para satisfação do eleitorado.

Há uns dias, o ministro Siza Vieira, além de se ter esquecido, como é conveniente, de tudo o que já antes tinha sido feito pelo turismo de saúde, afirmou que “o sistema de saúde português é um dos melhores do mundo”. Sinceramente, não sei se é, nem em que métricas o senhor ministro se baseou. Digamos que ainda é bom quanto baste e vai tendo o mérito de comportar um SNS universal. Mas para que a universalidade possa continuar a ser uma realidade, mais que não seja pela garantia de acesso, é bom que o Estado garanta o direito à proteção da saúde por via de todo o sistema. E, convenhamos, o ministro socialista não diga que tem “orgulho e satisfação em termos sido capazes de oferecer aos nossos concidadãos um sistema de saúde que é dos melhores do mundo”. O “termos sido capazes”, no que ao sistema diz respeito, só se pode referir à iniciativa privada e não à intervenção do governo dos últimos quatro anos. O “oferecer”, com a carga fiscal vigente e os preços das apólices, ADSE em particular, só pode ser piada. Das boas.