O século XIX é o que melhor nos retrata. Se uma das características do ser português é adiar a resolução dos problemas, não terá havido momento em que tal seja tão evidente como nessa altura. E o mais interessante é que quando olhamos para essa época damos conta que esse adiamento não foi assumido. Os políticos, a imprensa e os poucos que fora da política e da imprensa se interessavam pela governação e liam jornais, não assumiam que fechavam os olhos ao essencial enquanto discutiam o acessório. O fenómeno tomou proporções tais, que os dramas que Portugal atravessou no século XX foram consequência do adiamento do que era importante no XIX. Dito de outra forma, os Portugueses do século XX viveram as consequências de não se terem ultrapassado os temas que marcaram o século anterior. Do mesmo modo, sofremos actualmente a não resolução do que deveria ter sido tratado há 20 ou 30 anos, tal como os nossos filhos irão passar dificuldades por não enfrentarmos as verdadeiras questões que nos afectam hoje.

Como consequência dessa paralisação (que não equivale a inércia, pois que a actividade política é feroz) temos um Estado tão rígido e irreformável que à mínima alteração se desmorona. O risco é imenso e a solução que se tem encontrado é ainda mais rigidez. Um círculo vicioso semelhante ao que ditou o fim do Estado Novo ou dos Estados comunistas do leste europeu. Também nesses casos pouco ou nada se podia fazer, em pouco ou nada se podia mexer sob risco da derrocada total. Foi, aliás, o que acabou por acontecer. Uma ordem em Berlim mal interpretada por um funcionário, a percepção em Lisboa que o regime não tinha defensores e o que parecia perene acabou sem um tiro, um alarme, um choro; apenas o alívio.

É deste Estado que atrofia, que deriva o resultado de André Ventura. O voto de quase meio milhão de Portugueses em alguém que grita e ofende, que não apresenta uma ideia, um projecto para o país, só pode ser de protesto. Um protesto de gente impotente porque não ouvida, pessoas amarradas que não têm para onde fugir, cidadãos fartos e desiludidos que não se importam em se iludir uma vez mais, se esse for o preço a pagar para se punir uma aristocracia política que se repete com soluções falhadas.

Temos dois exemplos muito actuais e demonstrativos do beco sem saída a que o país chegou. Um é o impedimento do ensino à distância pelas escolas, sejam públicas ou privadas, que se prepararam para um segundo confinamento. O ministro, que não cumpriu o que prometeu em Abril e não dotou atempadamente todas as escolas e os alunos com os meios necessários para o ensino à distância, impediu o acesso às aulas para que não se tornasse evidente o falhanço da política de centralização do ensino. Outro caso é na área da saúde em que se preferiu tudo menos chegar a um entendimento com o sector privado. Na verdade, aceitar a colaboração do sector privado seria admitir a existência de dois sistemas de saúde válidos. Significaria equipará-los, o que uma socialista da linha dura não poderia admitir. Na saúde, tal como na educação, a ideologia jogou mais forte. O socialismo foi mais importante que a nossa saúde e a educação dos mais novos.

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Noutro país democrático isto seria inaceitável. Sucede que Portugal está paralisado. Uma mudança, por mais pequena que seja, uma cedência, por mais insignificante que se torne, terá como consequência a derrocada do edifício em cima do qual pessoas como Brandão Rodrigues e Marta Temido edificaram as suas vidas políticas.

É quando a inflexibilidade se torna imprescindível para a sobrevivência que deixa de haver diálogo, seja com as escolas, seja com os hospitais privados. É nessa altura que desaparecem os compromissos com outros partidos que não o do Governo. Quando António Costa declara que “no dia em que a sua subsistência depender do PSD, este governo acabou”, o que o Primeiro-Ministro afirma, é que os acordos pressupõem cedências e estas implicam o fim do que existe. Não há espaço para reformas, nem para diálogo, menos ainda para acordos. O país ficou refém desta paragem. Perante um dilema desta dimensão quem vota escolhe o primeiro que promete virar o sistema de pernas para o ar. Quem perde por cem, perde também por mil. Não é a primeira vez. Não será a última.

Por estes dias, lancei-me na empreitada que é ler a biografia que o jornalista Charles Moore escreveu sobre Margaret Thatcher. Há muitos pontos interessantes, mas neste texto realçaria a capacidade que o Reino Unido teve, num período em que era considerado “the sick man of Europe”, em eleger para chefe de governo alguém que vinha de dentro do sistema e que o prezava, alguém que se propunha a reformá-lo de forma a salvá-lo. Ao contrário do que se possa julgar, o feito de Thatcher não se deveu tanto ao seu génio político, mas essencialmente à sua capacidade de trabalho. A primeira-ministra britânica não era uma populista. Quando apontava as falhas do sistema, não criticava a sua essência, mas os seus excessos. Porque trabalhava e conhecia ao pormenor as leis e os números e as matérias sobre que se debruçava, quando falava dizia a verdade. Conseguia-o não por afirmar em alto e bom som que era verdade, mas porque os factos que conhecia o comprovavam. Apesar de ser o doente da Europa, o Reino Unido mudou para melhor, ultrapassou os seus dilemas, atitude que muito beneficiou os Britânicos nas três décadas que se seguiram. Apesar dos desafios, o Reino Unido não se encontrava num beco. Viu uma saída e com trabalho, dedicação e uma capacidade de reconhecer os próprios erros, de se corrigir, entregou-se para a alcançar.

Em Portugal experimentamos o oposto. Sem um pensamento minimamente útil, mas discussões fúteis e frívolas não se pensam reformas. O sistema enrijeceu, fixou-se no tempo ao ponto de parar e de qualquer mudança, por mais ínfima que seja, colocar em causa todo o edifício. Este tem sido o nosso fado. Assim foi na monarquia constitucional, que com o passar dos anos, décadas, terminou com uma revolução que aparentava mudança, mas que não passou disso: de uma aparência. O fenómeno repetiu-se com o corporativismo do Estado Novo, que se transformou no socialismo da Constituição de 1976.

Estamos em Janeiro de 2021. Ainda não é tarde, mas a porta estreita-se.