Parece evidente que faltam alguns pontos nos is da disciplina Cidadania e Desenvolvimento. Mas este debate só será útil se formos capazes de distinguir entre uma intervenção para melhorar a orientação ou práticas e uma espécie de obstinação proselitista.

Como educador sempre desconfiei das visões do mundo fechadas ao diálogo, com ambição de verdade e aninhadas em trincheiras que separam os nós (os bons) dos eles (os maus). É, em primeiro lugar, o caso da ideologia de género e de outras propostas ideológicas, como espécie de monólito a atravancar o encontro e o debate em torno da educação para a cidadania, numa arrogância que se opõe às opções educativas enquanto prerrogativa e direito dos pais. Mas é também, em segundo lugar, o caso de outras vozes que, confrontadas com as imposições ideológicas, defendem o fim da obrigatoriedade da Cidadania e Desenvolvimento, que é sinónimo provável do fim da própria disciplina.

Esta última posição expressa, em alguns casos, uma indiferença ou suspeição em relação à escola pública, que parece mais forte quando a referência, como aluno ou como pai, é a da escola particular. Contudo, hoje, no ensino particular, o fator que orienta a escolha do projeto educativo, sobrepondo-se às questões académicas, é a capacidade de apoiar o desenvolvimento integral de cada aluno de forma a que este possa, na feliz expressão inglesa, to thrive.

O direito à educação é, em primeiro lugar, o direito ao pleno desenvolvimento da personalidade. É uma missão que não se coaduna com proselitismos coercivos das opções pessoais e familiares, nem nenhum tipo de doutrinação, mas que também não dispensa oportunidades educativas de crescimento pessoal e social.

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Por esta razão, assumindo como primeiro ponto a colocar nos is a discussão de orientações e conteúdos, é preciso assegurar que o resultado da surdez e incapacidade de construir alternativas em conjunto não seja, mais uma vez, o fim de um espaço curricular dedicado ao crescimento pessoal e social. Um desaparecimento com maior impacto nas crianças que mais dependem da escola para adquirir os recursos (conhecimentos, capacidades e atitudes) de que precisam para viver bem, realizar-se, enfrentar os desafios e ser feliz nos nossos dias, e que, sabemos todos, não são exclusivamente académicos.

É evidente que um tempo semanal no currículo não permite adquirir todos os recursos importantes para construir uma vida boa. Mas essa evidência não obscurece o potencial de um tempo e espaço onde os alunos podem construir aprendizagens em conjunto, que promovam a relação de cada um consigo mesmo, com os outros e com o mundo; onde professores e alunos podem cuidar do grupo turma (relações, conflitos e problemas); onde é possível o envolvimento em projetos comuns; onde a experiência de partilha, diálogo e debate pode ser um bom ensaio de participação na cidade (cidadania), comprometida com a justiça (desenvolvimento).

Apesar de alguns argumentos defenderem a diferença entre a disciplina passar a ser facultativa e o seu fim, é fácil perceber que o potencial deste tempo disciplinar sai fragilizado, para não dizer moribundo, com a exclusão de alguns alunos. Em primeiro lugar, porque se é um tempo importante, deve sê-lo para todos. Em segundo lugar, pela importância não apenas do que cada aluno aprende, mas também do seu contributo para as aprendizagens de todos e o crescimento do grupo.

Três pontos mais práticos, que merecem maior desenvolvimento, têm em vista a atualização deste potencial e a possibilidade de ultrapassar alguns impasses.

O primeiro ponto é a necessidade de cada escola fazer uso da sua autonomia para, respondendo aos desafios da sua realidade específica e envolvendo a comunidade, construir um projeto capaz de concretizar e expressar o que se quer com a disciplina (objetivos) e o que se vai fazer em cada ano de escolaridade (estratégia), com as adaptações necessárias a cada turma. Só assim será possível ajudar os professores, envolver os pais e parceiros, aproveitar sinergias e melhorar de ano para ano.

O segundo ponto é a importância de um enquadramento pedagógico que privilegie a participação, o questionamento, o diálogo e o grupo, útil e estimulante para os alunos, mais associado à promoção de competências e menos à transmissão ideológica de conteúdos.

O terceiro ponto, pela exigência desta missão, que em algumas escolas e turmas parece uma missão quase impossível, é o apoio aos professores. Um apoio que deve ir além da disponibilização de recursos teóricos, para incluir formação, acompanhamento e partilha de boas práticas. Sobressaem como forças de impulsão, a existência de um coordenador e de uma equipa em cada escola, mas também a integração do tempo de preparação no horário dos professores.

Há muito a fazer. Mas também é preciso dizer que há muito trabalho já feito. Existem por todo o país escolas e professores apostados em projetos de Cidadania e Desenvolvimento com qualidade, bom senso e com o envolvimento da comunidade, orientados para apoiar os alunos no seu crescimento enquanto pessoas e cidadãos. Concordo que é preciso com urgência e coragem pôr os pontos nos is da Cidadania e Desenvolvimento, mas gostaria que o fizéssemos valorizando melhores oportunidades para a formação integral, reforçando o que existe de trabalho e de aprendizagem nas escolas e evitando pontos finais.