Agosto termina como começou: incerto, estarrecido, dormente. Choveu e neblinou como numa primavera britânica, puseram-se noites de bafo tropical e dias em que nem à sombra se conseguiu ler na praia. No meio de todas as estranhezas, tudo terminou igual. Houve marés vivas e acalmias duradouras. Mas a incerteza, o encolher de ombros a qualquer desaire e a hipocrisia moral da praça pública resistiram, firme e hirtamente, ao mundo novo da pandemia.

Sem querer insistir na retórica, é notável como o país que viu 18 idosos morrerem nas condições mais inenarráveis decidiu encerrar a tragédia com uma polémica: um vídeozinho no WhatsApp em que descobrimos todos, como se já não soubéssemos, que o dr. Costa tem duas faces e mau feitio na mais verdadeira delas. O empurrãozinho a um velhote em pleno Terreiro do Paço, o puxão de orelhas à repórter camuflada de automóvel e o convite marialva a Assunção Cristas para irem “comer um peixinho” não foram suficientes para desfazer esse risível mito de que o sr. primeiro-ministro se trata de um gajo porreiro. Foi num desses dias de verão, em que o Portugal respeitador das tradições se deleitava com conspirações televisivas e desportivas de nula consequência, que nos fingimos todos surpreendidos com o tom e o dedo em riste do dr. Costa.

No vídeo, e talvez seja essa a sua maior validade historiográfica, a plateia não se choca. Os gajos, pá, cobardes, pá, porque eu, como vocês sabem, sou um bravo do pombal ­– sendo que os dois maiores atos de coragem política da sua carreira foram enfrentar um secretário-geral com o carisma e a popularidade de António José Seguro e, de seguida, sobreviver a uma derrota eleitoral humilhante contra um governo igualmente impopular mas, coincidentemente, vencedor.

Porventura, será essa uma das ironias maiores deste tempo: os fulanos que vinham “por termo à austeridade” foram presidir ao Eurogrupo, o governo “mais à esquerda de sempre” foi liderado por um político pós-ideológico e a era dos afetos foi coadjuvada por um mal-disposto disfarçado de bonacheirão – o dr. Costa, manifestamente. Nada disto é exatamente novo, nem necessitava de prova multimédia. Por respeito aos jornalistas do Expresso não envolvidos na novela, escuso-me a comentar ou sequer relatar o sucedido. Constato apenas que a moda da inimputabilidade, em que obviamente ninguém se demite nem se responsabiliza por coisa nenhuma, passou de São Bento para algumas redações. À primeira vista, não foi mais do que uma evitável osmose. À segunda, um tremendo tributo à tal bravura pombalina.

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O que realmente me apoquenta – e tanto contrasta com a indiferença ao que importa – é outra moda, igualmente perigosa e característica do estado do regime. Nas últimas semanas, uma série de personalidades da direita democrática portuguesa foram alvo de calúnias e manobras intimidatórias no espaço público. Primeiro, Miguel Morgado, do PSD, foi acusado de nutrir “simpatias do ideário fascista” na RTP, por Ana Drago, sem que ninguém questionasse a tirada e fosse possível um professor universitário, ex-deputado, vice-presidente de bancada e conselheiro de primeiro-ministro, corresponder à reencarnação lusitana de Mussolini. Depois, António Nogueira Leite, também um homem da academia e do centro-direita, foi vilmente atacado como “radical” e apologista do regime nazi por meras constatações factuais a ver com a origem do movimento nacional-socialista na Alemanha.

Há algo, com isto, que me parece claro: se a esquerda e demais simpatizantes prosseguirem com esta campanha persecutória contra aqueles que são ferozmente democratas – e, no seu direito, ferozmente não-socialistas – das duas uma: ou acabam a falar sozinhos ou com quem o diálogo democrático é impossível. Neste momento, talvez isso lhes pareça mais confortável, não vislumbrando as semelhanças que vão ganhando com aquilo que julgam combater. Vemos isso nestes tiros mais direcionados, mas também na pressão crescente em associar tudo o que estiver à direita do PS ao Chega, conferindo uma desproporção – irresponsável, simplista, dissimulada – ao partido de André Ventura.

A manada, todavia, sorri e segue o sino. Para eles, quem não for socialista tem um altar ao dr. Salazar no corredor, junto à despensa. Até agora, o facto é que o Rei de Espanha não veio, o Cavani também não, o dinheiro da Europa nem vê-lo, a vacina idem, e a indignação por Reguengos prescreveu já prazo de dignidade. Mas virá aí o fascismo? Enviem-me, por favor, o respetivo vídeo. Estarei na praia. Longe dos iludidos – e das desilusões.